quarta-feira, maio 14, 2008

PERSEU E A MEDUSA OU NÓS E A REALIDADE?

Vamos usar como base para essa reflexão um mito grego. Sim, porque os mitos nos têm muito a ensinar na medida em que constituem uma condensação simbólica da consciência, da inconsciência e da experiência humana ao longo dos tempos. Então pensemos no mito de Perseu e Medusa. A Medusa era um monstro tenebroso com cabelos de serpentes. O olhar dessa criatura petrificava literalmente todo e qualquer opositor de tal forma que quem a enfrentava acabava reduzido a pedra. E se determinarmos que essa figura da medusa, também conhecida como Górgona, é uma representação simbólica da realidade, o que poderemos dizer? Poderemos dizer que a realidade é monstruosa, que ela nos amedronta, nos petrifica, nos desumaniza, nos angustia e nos reduz à insignificância. Então, nossa vida é essa luta para sobreviver à estagnação pétrea, à desumanização imposta pela realidade meduzina. E ao ver o tanto de pessoas que a realidade desumaniza, petrifica, reduz a pó, de imediato, nos enchemos de desânimo e tristeza. É como se não existissem saídas.

Mas esse é um lado do mito da Górgona. No correr da narrativa mítica, nos damos conta de que Perseu venceu a Górgona, decapitou-a e isso significa muito na medida em que nos mostra uma saída. Perseu evitou o olhar da Medusa, evitou também olhá-la. Traduzindo, Perseu evitou a crueza da realidade, para poder sobreviver a ela e evitar essa crueza, sua dureza, não significou ignorá-la. O que fez o herói mítico foi mudar a forma de olhar, mudar o ângulo sob o qual estava acostumado a ver a realidade. O ângulo que o paralisava, que o insensibilizava, que ameaçava a sua existência humana, tornando-o frio como uma pedra. Perseu notou que poderia encarar o monstro mirando-o pelo reflexo do seu bem polido escudo. Assim, acompanhou os movimentos da Górgona até o momento em que pôde desferir-lhe um golpe seguro e certeiro, vencendo o terrível animal.
Uma das lições que o mito nos dá então é a de que precisamos mudar o modo de ver e encarar as coisas de vez em quando, para nos livrarmos da paralisia terrível que o posicionamento monolítico nos provoca. Mudar a maneira de ver um amigo, um irmão, um inimigo, um filho, a família é, em princípio, evitar os conceitos pré-elaborados, é não se satisfazer com a imagem imediata, é deixar que o outro apareça diante dos nossos olhos de forma diferente, como uma novidade inquietante; é não se deixar apanhar pelo que brutaliza o olhar, pelo que o desumaniza.
O que fizemos e o que temos feito, principalmente no campo político, é isso. E não é fácil fazê-lo. Afrontar a realidade fora do campo de acomodação que a faz funcionar, fora do campo de condicionamento que ela cria para a gente se submeter é quase sempre muito violento. Precisamos matar uma medusa por mês pelo menos para não virarmos estátuas de pedra, ou melhor, bonecos nas mãos dos outros. E matar esse bicho, ou seja, desmistificar uma prática, desmistificar um pensamento, um modo de encarar a vida, gera rancor, irritação e reações emocionais as mais diversas, nas pessoas que estão arraigadas a essas coisas, com destinos petrificados. Numa situação dessas, como tocar o coração, o orgulho e o caráter de pessoas petrificadas a não ser com marteladas, com marretadas? No que concerne a nossas críticas políticas em Uibaí, por exemplo, temos a impressão que já rendeu o que devia render. Elas fizeram muita gente ir estudar, outras se preocuparem com o que fazem e o que dizem, fez outras irem ler e escrever e, no momento, nos damos por satisfeito com isso. Não nos incomodamos com o peso do mal-estar emocional dos outros que sobra para nós, isso faz parte do processo. Quando nos propusemos a questionar a nossa realidade de esquerda já contávamos com essas reações. Soubemos nos blindar (parte boa da informação psicanalítica) e o fizemos como deveria ser feito, nos momentos adequados.

Como dissemos, essa fase rendeu o que podia. Agora o foco é outro: a união, a organização, a base... O Boca do Inferno 35 já sinaliza essa nova direção. A nossa preocupação é organizar o que está ausente dessa linha que foi bombardeada. É dar visibilidade ao que a nossa prática (de todos os uibaienses) deixa ausente, ignora. Vamos, a partir de então, fazer emergir o mais simples, agora, com uma boa bagagem, levando uma cabeça de Medusa na mala. Isso mesmo, haviamo-nos esquecido de dizer que olhar a realidade de outro modo não é só uma forma de vencer o que há de cruel, duro e desumano nela senão também um modo de tê-la como arma em nosso próprio benefício. Perseu carregava a cabeça da Górgona dentro da capanga o que o tornara invencível. (vejam que lição: vencer a dureza da realidade nos torna invencíveis) Toda vez que enfrentava um inimigo imbatível, retirava da capanga, segurando pelos cabelos de serpentes, a cabeça do monstro e mostrava ao inimigo que, ao fitar o semblante da medusa, virava uma estátua de pedra inofensiva.
Por fim, pensamos que todo o mundo tem uma medusa a atormentar e que precisa ser decapitada. Uns demoram mais para vencê-la, outros são eliminados pelo seu olhar terrível. Muitos que a vencem não sabem usá-la em defesa própria. Mesmo assim, cada quem escolhe o ângulo mais estratégico, pelo qual acredita que corre menos riscos de se sucumbir. É por isso mesmo que pessoalmente não estimulamos ninguém a seguir nossos passos. Os movimentos que aprendemos a esboçar, como desvios da dura realidade, podem configurar-se como abismos para os outros. É por isso também que ficamos atentos às soluções que os outros acham em seus enfrentamentos, aproveitando as soluções que amenizem nossa luta e repudiando soluções que podem nos atirar ao abismo. HÁ BRAÇOS! (alan, junho de 2007)

Um comentário:

Anônimo disse...

Este mito é incrível, Alan , e , tomando-o como partida,você escreveu um texto instigante. Que instrumento a língua, meu velho!!!
Mas estive pensando:
"...acabava REDUZIDO a pedra.".Tal expressão não pressupõe uma superioridade do homem ante a pedra?! E, se assim for, o homem da Idade da Pedra seria superior ao da Idade do PC, não é mesmo?!
E, se não for assim, o "reduzido" não foi empregado ali com nenhuma carga valorativa,não é? Ou foi?! Ou o buraco é mais embaixo...

Só tô viajando, meu velho,

Até!
Catão estava certo? Cartago foi destruida...
Oz