segunda-feira, dezembro 18, 2006

LITERATURA E INTERAÇÃO

Desarticular un poema como se desarticula un
sistema es un delito, por no decir un sacrilegio
.
(Cioran, Esse maldito eu, 1987)


Evitando discussão técnica ou teórica, se tivesse que dizer qual a função da Literatura, diria que é emocionar. Não entendam emocionar apenas como sentimento positivo. Nojo, ódio e desprezo, por exemplo, também são dimensões da emoção. A Literatura, vista assim, é a arte de criar, por meio da linguagem, a sensação de verossimilhança ou de estranhamento, que produz em nós humanos um processo de empatia, purgação e catarse. A importância de tudo isso é que a Literatura gera alguma forma de prazer ou alívio, seja porque nos vemos melhores do que somos na criação literária, ou piores do que somos, como dizia Aristóteles, ou ainda porque temos muitas vezes a nossa inteligência posta em xeque no jogo de ocultação ou na desfiguração da lógica engendrada pelo tecido literário, tramado fio a fio pelos mais diversos escritores de todos os tempos.
Talvez essa primeira especulação sobre literatura tenha mais a ver com a posição do leitor leigo. Aquele leitor que se atira à fantasia criada pela atmosfera do texto e sofre, sorri, irrita-se, apaixona-se. Independente de qualquer sofisticação, todos nós temos a natureza desse tipo de leitor, porque somos humanos e, como tais, carecemos de sonhos e de fantasias para seguir a jornada da existência. Em princípio, a Literatura não deveria pretender mais do que isso. A gente escreve para atingir a alma do leitor em algum ponto e realmente o faz, mesmo quando toca menos do que o desejado ou apenas o indesejado.
Existem, imbricadas ou paralelas, outras formas de entender ou se relacionar com o texto literário. Quem faz Literatura, quem escreve pode muito bem ver o texto como uma estrutura formal, com arquitetura elaborada ao sabor da consciência. Há então quem faça Literatura escolhendo minuciosamente as palavras, montando cautelosamente a trama, manipulando o extrato sonoro e a cadência rítmica da língua. Para essas pessoas, o prazer está em desafiar a língua, em explorar suas potencialidades expressivas. Há, entretanto, boa literatura feita inconscientemente, a reboque da sensibilidade do escritor, de sua intuição e competência lingüística. É necessário lembrar que até mesmo os textos conscientemente arquitetados movimentam conteúdos simbólicos alheios ao controle do autor.
Outra maneira de encarar a Literatura é aquela difundida por professores e técnicos ligados à Teoria Literária. Esses profissionais muitas vezes, como numa aula de anatomia, dissecam o texto literário, procurando explicar sua composição e os processos de criação utilizados pelo escritor. A mistificação e vulgarização dessa prática têm tirado do leitor o direito ao sabor do texto, bloqueando-lhe a possibilidade do sonho e da fantasia. O leitor, esterilizado pelo aparato teórico, só consegue ver no texto, pleno de vida e emoção, o cadáver frio em que pretende contar as vértebras e músculos inativos.
O ideal é valorizar todas essas possibilidades de convívio com a criação literária sem que nenhuma delas se sobressaia às outras. Desde que bem situadas, as variadas formas de interagir com a Literatura são válidas. Particularmente, penso que, no convívio com o fenômeno literário, o primeiro passo é ir ao encontro do sonho, da fantasia, do sabor do texto. Depois, a quem interessar outros vôos, basta mergulhar em busca do saber do texto. Nesse caso, se precisar de companhia, os teóricos da Literatura serão amigos surpreendentes.
Prof. Alan Oliveira Machado.