segunda-feira, junho 19, 2006

OS CAÇADORES DE MODÃO

OS CAÇADORES DE MODÃO

Lembro-me de que na década de 80 surgiu um, por assim dizer, movimento de juventude bastante curioso em Uibaí: a caça aos “modão”. Não houve canabrabeiro com hormônio correndo nas veias que não participasse com alguma assiduidade da cruzada de combate ao uso do mode. Deixo logo claro que esse fenômeno, em meu ver, se restringiu à cidade, não se estendeu, por conseguinte, ao município, felizmente.
O Mode é um vocábulo corrente em Uibaí, que muitas vezes funciona como elemento interrogativo (advérbio interrogativo): mode que tu num ganhou? Como indicador de causa (conjunção subordinativa causal): não teve festa mode a chuva! Outras vezes, como mera preposição: olha o menino mode o cachorro não morder! Não só o mode, mas o pissuir, o dispois, o muntcho, dentre uma série de termos ainda em uso na Canabrava, são remanescentes do Português falado no Brasil Colônia. Muitos desses termos foram preservados em alguns falares locais do país, devido ao isolamento de que gozavam esses logradouros, com relação aos grandes centros. Graças a esses rincões do país, que mantiveram vivas algumas marcas do falar colonial, é que a Universidade de São Paulo, unida a outros centros de pesquisa, vem conseguindo fazer a reconstituição do português falado no Brasil Colônia.
Não tenho certeza quanto à origem do movimento de combate ao mode. Tenho para mim que, influenciado pelo convívio com a variação lingüística da capital e pela recente entrada no mundo educacional da grande urbe, Celito levou esse (como diria Flávio) batismo civilizador para o Pé da Serra Azul. Era um escárnio atrás do outro. Na Rua Grande, diariamente se via Merica gritar para Celito do outro lado, na esquina de Diniz:- Acabei de pegar um modão aqui! Aí a molecada corria em direção a Merica para comentar e dar risadas do modão que Gilo, Zezim, Luis Binha, Maria de Alite ou qualquer outro que fosse soltara, numa infeliz distração. Infeliz porque falar um mode tornara-se crime punido com pesada gozação de modo que as pessoas afetadas pelos pegadores de modão vigiavam a própria fala o tempo todo.
Eu fazia parte da cruzada do modão e regularmente estava junto com a turma infernizando a vida dos conterrâneos. Uma vez Pichiro (irmão de Celito) chegou esbaforido lá na casa de Mariinha de Leandro, onde a turma se reunia para jogar aquele jogo com apenas uma trave, no qual Konan e Tinho eram campeões, só para dizer que presenciara Domingão soltar logo foi uma arrouba de modão. Todo mundo queria pegar um modão de tal forma que a brincadeira passou a ficar grosseira e desrespeitosa. Até os velhos estavam sendo perseguidos pela turma do modão. Com eles, a coisa era demasiado indelicada. Mas menino não leva muito em conta esses “detalhes”. Na mesma época dessa inquisição lingüística, Tinho de Mariinha, que externava certo desagrado com a perseguição dos mode, inventou uma moda de colocar a sílaba “pi” antes de tudo quanto é nome próprio. Era um tal de PiMérica pra cá, PiÁlan pra lá, PiCélito pra acolá... Ele só recuou de empregar o tal “pi” em Konan, nosso musculoso amigo. Também, ficava desajeitado chamar o cara de PiKonan.
Olhando a distância, com a maturidade trazida pelo tempo, diria que toda aquela implicância com o mode tinha dois lados: por um, não passava mesmo de algazarra típica de adolescentes, por outro, era uma versão agressiva do fenômeno de atualização da língua, que, no caso, deveria ir sendo estabelecido, não a troco de pressão e zombaria, mas paulatinamente com a renovação dos falantes, pela convivência com outras variantes do falar brasileiro e por intensas interferências culturais de ordens diversas. É isso, a língua muda com o tempo, e ainda bem que a gente também muda. Hoje, por exemplo, creio que, como eu, os colegas perseguidores dos modão sentem certo prazer em ouvir uma seqüência de mode brotar daquela forma gostosa, simples e natural que nosso povo tem de falar.
Enquanto ponho fim a esta curta ponta de memória, fico pensando no que a juventude anda aprontando nos tempos de agora em Uibaí. Será que são tão inocentes quanto nós fomos, hein, Celito? (alan oliveira machado)