quarta-feira, março 29, 2006

BRIGA DE COMÉRCIO

BRIGA DE COMÉRCIO

(Essa é para o folclore canabrabeiro!)

Contam que lá pras bandas do Sobreira só tem um boteco. O incutimento dos pés-de-cana e até dos mais sérios homens do povoado é o bar do Quinca. Quinca, sempre atencioso, recebe diariamente seus fregueses: uns a caminho da roça, lascam uma pinguinha nos peito pra espantar o sono e ganhar disposição; outros, em retorno, quebram um venenozinho pra abrir o apetite e espantar o cansaço.
Falam as más línguas que Priquitim anda tocando uma roça nas imediações. Dizem ainda os que não tem mais o que fazer que ele bate perna diariamente pro bar do Quinca. E, desocupados de tudo, esses infelizes, que vivem dando conta da vida alheia, espalharam que Priquitim nem não acha ruim atravessar o asfalto pra saciar suas inquietações etílicas. O problema é quebrar carreiro de volta com o sol cozinhando o couro e o álcool fermentando nas veias.
É também narração de fofoqueiros que Priquitim, cansado de secar canela, indo pro Quinca, deu na cabeça que o Sobreira precisava de um boteco concorrente. Aí, no gozo da conveniência, montou estabelecimento na própria roça, beirando o asfalto e abriu letreiro: Bar do Priquitim. O empreendimento dividiu a freguesia do Quinca e gerou acirrada disputa publicitária entre os dois comerciantes. Priquitim, sujeito pacífico, tratou de baixar os ânimos, de selar a paz definitiva.. Mandou Nino Lima pintar uma grande placa na porta do bar, com os seguintes dizeres: SE NÃO QUISER TOMAR NO PRIQUITIM, VAI TOMAR NO QUINCA!
alan oliveira machado

sexta-feira, março 10, 2006

O ESCREVIVER DE VITOR HUGO MARTINS

inquieta serra azul

Segue abaixo o texto que escrevi para a orelha do livro do Prof.Vítor Hugo Martins. Vale a pena ler o premiado livro Contos Cardiais.



Vitor Hugo Martins, esta figura camoniana por trás dos óculos escuros, perspicaz, carioca, é uma personagem rara dentro do nosso mundo acadêmico. Conjuga o rigor teórico, apolíneo, do Doutor, com a embriaguez, o desprendimento dionisíaco, do artista. Com a existência e a persistência desse homem, a Academia, muitas vezes ascética, fria e fechada, ganha por dois lados: por um, o professor competente e cativante, demasiadamente humano; por outro, a literatura refinada, de alta qualidade. Quem até então só conhecia o professor, a pessoa, verá, neste CONTOS CARDIAIS, o criador, o homem que luta com as palavras, luta vã, diria o poeta das epígrafes, mas infinda, inquietante e necessária como a vida.
Vitor Hugo é um flâneur, bem no sentido que dá João do Rio ao termo. É aquele andarilho inteligente, com o coração aberto ao mundo, às singularidades das vivências. Esse vagamundear certamente se reflete neste seu bem tramado livro de contos. Aqui, um périplo pelos cantos cardeais do Brasil se converte em CONTOS CARDIAIS, referentes ao coração. E este às vezes se avoluma, outras se apequena diante da força existencial de suas personagens, predominantemente gauches, de têmpera sangüínea, dionisíaca. Assim, vai-se enfileirando de conto a conto, de canto a canto, esta gente excluída, esta gente carnal, esta gente da margem: Divino, Diana, Gringo, Bonito, Bernadete, Ancila...
Porém, mais do que um desfile de almas, temos em CONTOS CARDIAIS o saboroso texto de um exímio escritor, de um perito na lida com a língua. No contato com o escreviver deste mestre, nos damos conta de que a verve, o estilo vitor-huguiano é fruto de profunda consciência de linguagem, da palavra, diga-se. Isso é o que denuncia a sua prosa paratática, picada, que se esquiva dos verbos, forçando o substantivo, o nominal, a ganhar efeitos inusitados, mediante hábil manipulação metabólica ou semântica. Ademais, com a mesma perícia que atribui ao seu “Divino 45” no estudo das vítimas, o autor se apropria, ainda, na medida certa, de bossas e tiques que dão a cada narrativa, situada regionalmente, um agradável colorido local.
Um livro de primeira, vibrante, rápido, é o que este deambulador (insaciável) nos entrega. E aqui temos, muito mais que o deleite, a sorte de apre(e)nder o mundo, a língua... Viva, vivíssima.

Alan Oliveira Machado
Poeta e professor

Goiânia, 14 de novembro de 2005.

sexta-feira, março 03, 2006

SÓ SE FOR ROUBADO!

( pra lembrar os velhos tempos!)

Guardo comigo a impressão de que os anos oitenta foram o auge daquela juventude universitária, inclinada ao copo, que atravessava as férias enxugando umas pelos butecos da Canabrava. Volta e meia essa estudantada se reunia em um barzinho específico, proseando sobre política, cultura entre outras variedades. Os estudantes, uns vindos de Salvador outros de Brasília, formavam uma verdadeira irmandade, com muita alegria, discussão e praticamente nenhuma desavença.
Houve um final de ano, especialmente, em que tava na moda roubar galinha pra fazer farra. Fato é que esses jovens adotaram tal prática e quase toda noite, lá pras tantas, a coisa se concretizava. Era assim, a turma se encontrava numa dessas biroscas pra tocar violão e comer água; prosear e contar causos, molhando a palavra e estalando os beiços, segundo alguns. A certa altura, um pouco depois das 23 horas, 32 pingas e algumas dezenas de cerveja, escolhiam a casa da vítima. Em seguida, determinavam quem iria seqüestrar irreversivelmente os galináceos e os que preparariam o banquete, a farofada de feijão verde ou andu. É de se imaginar o cheirinho de coentro e cebolinha roxa que exalava misturado ao aroma da penosa devidamente preparada. Isso tudo bem mexido numa bacia de tamanho razoável, com o grupo em volta comendo, feito tapuia, bolinhos amassados à mão e resenhando os incidentes e percalços do empreendimento bem sucedido.
Vale dizer que esses exímios ladrões de galinhas assaltavam geralmente suas próprias casas. Havia, porém, os que compravam as aves na feira, preparavam e levavam na noite seguinte já com o enredo do roubo inventado na cabeça. Sem contar que determinadas mães, escoladas nas habilidades dos filhos, sutilmente deixavam as galinhas amarradas pra facilitar o furto.
Vai que um dia eu, menino curioso, sempre na cola da novidade que eram os estudantes, testemunhei uma empreita desastrada. Lá pelas três da madruga, no calor da algazarra, neguim já cantando serenô eu caio, eu caiô, mais em espanhol que em português, como se diz: com bolas de gude debaixo da língua, um parente meu, cheio até a tampa, intimou o bando a roubar uns patos lá em casa. A intenção era comê-los no Banheirão. Ali num canto, apertando os olhos pra espantar o sono, eu ouvia o planejamento da turma numa linguagem meio babelesca, ao que parece, bem entendida por quem encontrou a molhação. Moleque. Ignorado. Um cisco... Ainda assim, por trás da leve cortina de sono, eu não ignorava o belo sorriso maroto de uma certa Lúcia.
Não durou muito, a cambada desceu o Cascalho chutando pedras, equilibrando-se entre soluços, risos bacantes e muita indaga. Lá atrás, um sujeito da CEU, estreitando a rua, gritava com voz mole: - Bebo porque é líquido! Mais adiante, outro da Ceubras, trocando as pernas, respondia com dionisíaca entonação: - Se fosse sólido eu comeria! O barulho, se brincar, dava pra ouvir na Lagoinha. É assim mesmo, bêbado só se dá pela necessidade do silêncio quando já acordou meio mundo. Nisso foi que chegando à porta lá de casa veio uma chuva de –Psiu, fala baixo! Seguida de risinhos cujo baixo volume só existia mesmo na cabeça daquelas almas recendendo a álcool.
Na ilusão do silêncio, entraram peitando tudo. E foi um fuzuê danado pra pegar esses patos. Bêbado enganchado em arame de cerca. Um tal de pega-solta... Cai-aqui-tropeça-acolá... Uns tentando achar o cerebelo... Pato escandalizando... Moça de pernas pro ar... Neguim espojando... Outros catando nica... Pena pra tudo quanto é lado... Aí pronto! Serviço terminado. O bando já ia saindo com dois patos bem apanhados quando deu de cara com Dona Maroca escorada na porta dos fundos. Ela, pelo visto, assistia há algum tempo a peleja dos meninos. E bota peleja nisso. A cambada nem percebeu que havia amanhecido. Fora eu, que permanecia como espectador, acompanhando o desenrolar da cena, o conjunto de bebuns lembrava a tela Os retirantes, de Portinari: todos sujos e mulambentos. Meu irmão na frente, já meio descachimbado, soltou o pato que trazia debaixo do braço. Aí minha mãe interveio, com um esboço de sorriso compreensivo: - Leva o pato, meu filho! No que meu irmão, mal disfarçando as involuntárias contrações diafragmáticas, respondeu com uma ponta de indignação etílica: - Agora não serve mais, só prestava se fosse roubado!
(alan oliveira machado)