quinta-feira, abril 24, 2008

VOCÊ E A POLÍTICA


alan oliveira machado

A política tem muitas faces. Por ser visceralmente social, ela reflete quase sempre a complexidade humana. Política, da raiz grega polis, que em português quer dizer cidade, pode ser entendida por ciência que estuda as formas como acontecem ou se estabelecem as relações entre as pessoas dentro de um aglomerado humano. As relações na sociedade são, portanto, políticas. Isso implica que não existem pessoas apolíticas, desde que essas vivam em grupo ou dele dependam. Onde há mais de uma pessoa, existe alguma relação de força, de interesse, de espaço, enfim, de poder. Essas tensões, comuns à natureza gregária do homem, são primariamente a própria política.

Se entendemos por política as relações de força, de interesse e de poder entre as pessoas, então podemos dizer que até mesmo namoro é político. Amizade e família também, porque em todas essas relações há um jogo de interesses e quem domina na relação de forças via de regra tem mais espaço e mais poder. Isso serve para ficarmos sempre atentos às ações que acontecem em nosso meio, das mais íntimas as mais públicas. Daí porque devemos nos interessar pelo que acontece em casa, na escola, na rua, no bairro ou cidade etc. É importante saber quais são os atores que estão mandando nesses meios, se eles estão agindo de forma sensata, se deveriam estar ocupando esses espaços ou coisa que o valha. Se não deveriam, significa que a relação de forças está debilitada, nesse caso ocupou o espaço quem decidiu ocupá-lo, não quem podia. Certa vez, o historiador inglês Arnold Toynbee disse, com muita propriedade, que o castigo de quem não participa da política é que será governado por aqueles que participam. Nada mais lógico e, também, perigoso.

Aristóteles conclui, no seu Tratado de Política, que o homem é naturalmente social e, portanto, um animal inevitavelmente político. Negligenciar essa máxima é se negar a participar do jogo e, conseqüentemente, assinar a certidão de subalterno e de joguete dos interesses de quem faz política. E acredite, leitor, particularmente há entre nós poucos que participam buscando o bem da coletividade.

Se está claro que a relação de forças firmada no namoro, em casa ou em qualquer outro espaço reflete interesses, devemos então nos perguntar quais interesses subjazem a essas relações: minha namorada fez-me desistir de ir a uma reunião ou festa, mediante um encenação emocional, com base em quê? Minha mãe, pai ou irmão mais velho impediu-me de assistir a um filme ou freqüentar um amigo, com que interesse? O prefeito suspendeu a coleta de lixo de determinada rua, com qual intenção? Perguntar-se sobre os motivos das ações humanas na sociedade, procurar as respostas e julgá-las é o primeiro passo para desenvolver consciência política. Ter consciência política é ser capaz de se situar no meio social de modo a perceber os interesses que estão embutidos nas relações de forças, com o fim de fazer escolhas e tomar decisões que não nos sejam lesivas.

Há dois tipos de consciência política: a consciência que se dirige a soluções imediatistas e individualistas, que num plano particular parecem não ser lesivas a quem opta por elas, mas que, resultantes de uma interpretação simplista da relação de forças, se afiguram mais como uma falsa consciência, já que num plano mais amplo atingem o ator dessa consciência. Tomemos como exemplo o comportamento do empresário que, pensando apenas no lucro, triplica o preço dos produtos acirrando a degradação social e econômica das quais será refém.

O outro tipo de consciência é aquele que desloca para a leitura das relações de força, as noções de coletividade e de justiça; que analisa o jogo de poder tendo em vista o horizonte macro-social e mede suas escolhas e ações, portanto, com base no que for menos lesivo para o meio no qual esta inserido e do qual dependem a sua sobrevivência, o seu prazer, sua alegria e sua qualidade de vida. Talvez fosse isso que preconizava Aristóteles em Ética a Nicômaco, quando diz que Mesmo se houver identidade entre o bem do indivíduo e o da Cidade, é manifestamente uma tarefa muito mais importante e mais perfeita conhecer e salvaguardar o bem da Cidade... Pelo que se depreende, nesse momento, o filósofo condiciona a ética à política, quer dizer, o ethos político importa mais que o individual.

Por trás das duas formas de consciência a que nos referimos há o que chamamos de ideologia. O exemplo que demos de consciência individualista do empresário, apóia-se nas idéias de que o que vale é lucrar a qualquer custo; que é mais esperto quem engana os outros; que importante é ter muito dinheiro e os outros que se danem. Já o ideário que sustenta o que chamaremos de consciência do coletivo é o de divisão eqüitativa dos benefícios sociais, de igualdade social, de justiça etc. Aqui temos a ideologia como conjunto de idéias que constituem tipos de consciência. Mas há um conceito mais restrito de ideologia, aquele sugerido por Marx e Engels em A ideologia alemã, que explica a ideologia como uma espécie de inversão. Os dois filósofos identificam ideologia com a separação que se faz entre a produção das idéias e as condições sociais e históricas em que são produzidas. Essa separação propicia aos donos do poder fazer com que suas idéias sejam as de todos, invertendo a noção de realidade dos que não são partícipes do poder. Essa inversão é o que envolve, por exemplo, o trabalhador da roça com um manto de ilusão e o faz votar em um grileiro, convicto de que as idéias e o modus vivendi daquele sujeito se equiparam a sua realidade ou refletem o futuro do seu modo de viver, numa grosseira inversão de valores que aprofundará ainda mais as diferenças entre sua classe e a dos grandes proprietários rurais. Esse tipo de ideologia é reflexo da alienação. É produto da inconsciência, da impossibilidade de julgar a realidade das relações de força.

Cabe esclarecer que não se pode ver o mundo sob o prisma da luta de classes sem correr o risco de reduzi-lo a uma ilusão maniqueísta, que escamoteia a complexidade das contradições e as particularidades das relações de poder. O conceito de Marx e Engels, amparado por uma visível clareza lógica, na medida em que é generalizado propicia o surgimento de uma compreensão muitas vezes tosca e simplista da realidade.

Como disse, a arte política tem várias facetas. Fazer política significa identificar e entender as relações de força e perceber-se como ator dentro desse jogo. Quem não joga o jogo da política não entende suas variações. Há por exemplo uma distinção entre fazer política no parlamento e fazê-la na comunidade. No parlamento, ou seja, nas diversas Câmaras e no Senado, dado à limitação do espaço, os grupos (partidos) negociam entre si ou se apóiam tendo em vista cada qual sempre sustentar a sua hegemonia naquele espaço, o que garante mais vitórias dos interesses que ele representa ali dentro. Se um vereador (vamos imaginar) que representa os interesses populares no restrito espaço da Câmara se alia com algum outro vereador que historicamente não compartilha daquela práxis, assim o faz (se for coerente) para garantir o espaço dos interesses populares dentro da Câmara. Para construir a hegemonia do seu grupo ideológico nas decisões daquele espaço. Porém, fora do meio parlamentar, os únicos aliados com quem ele poderá contar serão o povo e o grupos que participam do mesmo campo ideológico. Alianças no espaço social são quase sempre muito perigosas na medida em que podem confundir a interpretação da relação de forças, levando a uma percepção invertida dos atores e interesses que estão em jogo. Trocando em miúdos, uma coisa é fazer política partidária na Câmara, outra é fazê-la na sociedade. É preciso dizer ainda que há aqueles políticos nos parlamentos que fazem manobras internas tão somente para obter benefícios pessoais, esses constituem a pior espécie de gente que pode existir na sociedade.

Já deu para perceber, amigo leitor, a importância que tem a sua participação consciente nas relações sociais. Se você não participa, ou se participa sem se perguntar com quem ou com o que está lidando, correrá risco de ter seu destino e o da sua comunidade decidido por grupos ou pessoas que agirão para mantê-los eternamente com destinos de ignorantes, miseráveis e dependentes. Em outras palavras, conforme dissemos acima, é preciso estar atento para interpelar a realidade o tempo todo. Jamais devemos também nos satisfazer com as respostas imediatas que damos a nossas perguntas. É preciso cautela e certa dose de desconfiança. Devemos estudar nossas conclusões, compará-las com outras, torná-las elementos de discussão entre amigos, vizinhos, professores e familiares a fim de checar sua pertinência. Nesse momento, destaca-se então a necessidade de leitura teórica, técnica e filosófica. Um cidadão, nome que se deveria dar para a pessoa que assume sua responsabilidade política, é necessariamente um leitor do mundo, mas o é também de diferentes textos informativos, formativos e estéticos. Antenado com a realidade do mundo, sob todas as formas, é que ele cada vez mais qualifica sua capacidade par mudá-lo, sua capacidade para adequá-lo aos propósitos e desejos da sociedade como um todo, aos seus propósitos portanto.
Texto publicado em 2003.

quinta-feira, abril 17, 2008

sexta-feira, abril 11, 2008

A SOLIDÃO CARREGAVA UM LOUCO

alan oliveira machado, 2002

Hoje, em minha biblioteca, enquanto organizava alguns papéis velhos, encontrei uma fotografia amarelada, com data do final dos anos setenta. Nela, rompendo o pedregulho rústico da rua nova de Uibaí, uma figura enigmática, Chico de Elói: franzino, careca, cabisbaixo, descalço e maltrapilho, braços ao longo do corpo e, como de costume, dedos, indicador e médio, tensos e entre cruzados, como quem segurava um cigarro imaginário.

Fitando a foto, não evitei o transe romântico que nos faz evadir nas memórias da infância, tendo por desfrute uma suave sensação de prazer. Mas, desembarcando do devaneio romântico rumo à objetividade realista, a fotografia fez-me refletir sobre a diferença, porque aquele personagem cuja imagem ficou registrada no amarelado do papel era uma diferença e como diferença certamente muito deve ter perturbado a nossa linearidade lógica: rica em estupidez e pobre na percepção do mundo. Aquele “doido”, como muitos que caminham solitários - ainda hoje - pelas ruas das cidades de nosso país, um dia, pela luz de seus gestos, deixou em crise os nossos valores, pôs-nos a concluir que o trilho que seguimos, o vagão no qual embarcamos a nossa existência não passa por todos os lugares, traça apenas uma reta insossa, uma monótona trajetória. Provou-nos que ser gente ultrapassa as cercas da razão. Aquele “louco”, como muitos, agrediu a nossa frágil ilusão de ordem. Suas atitudes descascaram o verniz da nossa razão, fazendo-nos sofrer a violência de existir.

Travestimos, então, a dor de saber que a vida é absurda em ódio contra o “louco”, contra a diferença: ou o colocaríamos no trilho ou o mataríamos. Ou o isolaríamos ou simplesmente o encaixaríamos na locomotiva da nossa existência como uma peça inútil, ridícula e bufa. Como inúmeros outros, nisto se transformou talvez aquela imagem triste e solitária da fotografia: no objeto do nosso medo, do nosso ódio transformado em sarcasmo, em deboche. Por essa via, domesticamos a diferença de modo a não mais nos sentirmos ofendidos por ela. Daí em diante, todo ato do “louco” que nos enchia de cólera passou a nos fazer sorrir. Toda pedrada que ele dava em nosso espelho racional gerava o tolerante deixa pra lá, fulano é louco!

Porém, por mais que tentemos ignorar, “louco” é tudo aquilo que somos e negamos ser. É tudo aquilo de proibido que se passa diariamente no recôndito de nossas ações e pensamentos. Todos sabemos disso e quanto mais sabemos mais repelimos o “louco”, mais o afastamos, mais alargamos o fosso da diferença dentro de nós. Aqui, vale dizer: esquizofrênico é o indivíduo fendido, dividido. Aquele que vive em um mundo “real” e se comporta como se estivesse em outro, ou seja, todos nós somos “loucos”, “loucos” segregando “loucos” e quem não for “louco” que atire a primeira pedra!


ADENDO

Chico de Elói era meu primo. A crônica sobre ele vem de imagens da minha infância em Uibaí. Foi espreitando a solidão de Chico que me descobri tão só quanto ele; que descobri não existirem pessoas menos sós do que nós dois, que percebi a necessidade de amar os "indivíduos" no que eles têm de singular, independente do atropelo que outro provoca em mim cotidianamente. O infortúnio de Chico foi fazer pouco da ilusão coletiva em que vivemos (não de propósito, creio) ou talvez o infortúnio nosso seja supervalorizar o que ele desprezou.

Uma vez encontrei Chico no Beco de Braulino e ele me olhou com os olhos grandes e inquisitivos, típicos da nossa família, e disse, talvez me reconhecendo como um dos seus: "ontem eu vi um homem todo verde... O cabelo era verde, a pele era verde; quando ele sorriu, o sorriso era verde, então ele falou e a fala era verde e ele caminhou e o caminhado era verde..." Passei muito tempo tentando imaginar esse homem que Chico teria encontrado.

Outra vez, ele disse que viu uma cobra se engolindo pelo próprio rabo até desaparecer completamente. Achei intrigante a imagem. Muitos anos depois, encontrei em um livro de Carl G. Jung a figura simbólica do uróboros, uma serpente mordendo o próprio rabo, se não me engano, símbolo ao mesmo tempo da completude, da perfeição e do infinito... Então liguei as duas histórias e passei a imaginar que Chico tinha um desejo muito grande de harmonia e de regularidade, coisas que o nosso mundo não lhe oferecia... No homem tudo era verde... Na cobra, a auto-suficiência entrópica... (alan, 2005)

DE COMO FINGIR SER O QUE SE É

alan oliveira machado, 2005

Puxar conversa é apenas o que faço. Nem sei se teria autoridade para fazer mais que isso. Tendo ou não, puxo conversa e pronto. E isso às vezes é suficiente para agradar ou irritar. E isso basta para tocar narcisismos: uns sorriem satisfeitos, outros ralham enfezados. E eu fico a pensar em até que ponto eles têm consciência de que o mundo é muito mais schopenhaueriano do que se imagina. De que tudo isso então não passa de representação, de que há uma vontade que nos irmana e um princípio de razão suficiente que nos joga no gládio teatral das representações. O velho Schopenhauer está certo: o mundo é vontade e representação. Não devemos ser atores de um único personagem. Essa é a base do meu irracionalismo lógico (com oxímoro e tudo) já cheio de rótulos, como naquela canção de Raul Seixas, porque nesse mundo tudo tem que ser selado, carimbado, rotulado... aí sobram adjetivos para mim: o louco, o nietzschiano, o pós-moderno radical, o antifreudiano convicto, o triturador semiótico, o professor responsável, o superpai, o amigo corrosivo, e por aí vai...

O viés de consciência que atravessa meu pathos, desfigurado ou configurado pelas faces que me dão e pelas que me dou é o que poucos conseguem apreender: tem vezes que é necessário rasgar as fantasias porque é mais importante saber quem é o ator. Alimentar a doce ilusão de ir à coisa-em-si, de saltar para fora da causalidade nos faz destruir mundos e criar outros mais, mesmo sabendo que, como numa cebola, por trás de uma casca há outra e mais outra, e assim sucessivamente até a vontade cega tocar o vazio final.

Posso até aceitar o rótulo de triturador semiótico, levando em conta aquela conclusão de Heideger de que o homem é linguagem. Sou então um processador de linguagem? Um desmistificador de representações? Um caçador de semioses? Tudo isso é também representação? Qual o problema se for? Não estou condenando a linguagem, a única arma que nos torna mais fascinantes do que os outros animais (talvez piores também), uso-a nesse caso como uma espécie de exercício semiótico para triturar construções excessivamente fantasiosas e nefastas, hábitos estúpidos, práticas engessadas e tutti quanti e nem sei se consigo. Ora, aí vão dizer que tudo isso é somente construção narcísica minha, que é parolagem teórica, representação ou coisa que o valha, mas se for que problema há? Se não for será diferente? Com sacana sinceridade, quem não sabe que está diante de um problema corriqueiro de weltanschauung?

O ALMOÇO


(alan oliveira machado, 2005)

Tudo aconteceu como tinha de acontecer. Um breve encontro numa mesa de restaurante. Um longo ritual de acasalamento? Lamento. Os olhos dela passeavam por meus traços e eu tentava racionalizar o que via e sentia. Naufrágio total. Um corpo é um turbilhão de coisas e minha nau era frágil. Enquanto isso, a voz daquele ente aveludava os meus ouvidos. Ô vida... Coração pulsando a mil. Ela me queria, mas para quê? Imbecilidades que rondam a cabeça provocando a contração dos intercostais e impulsionando as bolas dos olhos a vagar desgovernadas para cima, para baixo, à esquerda e à direita. Tudo poderia ter sido só fantasia. Qualquer cabeça faria isso. Não gostamos de perder, então simulamos alguma forma de vislumbrar a apoteose. Errei a boca. A comida caiu na roupa, vexame, e a boca da fêmea se deliciou: a língua umedeceu os lábios. A boca carnuda agora pedia para ser sobremesa. Isso era constatação minha, ainda sem me recompor do erro da boca. O garfo virou um tridente, estava vermelho, disfarcei: - Está quente aqui! Passei um guardanapo sobre a malha da camisa. Mirei o pescoço de porcelana, mais uma fantasia... Pedaço de gueixa? Da base do gargalo de porcelana descia um colar. Na extremidade, uma figa oscilava entre as intumescências dos seios, libertas pelo amplo decote. Meus olhos também passeavam. Sabia muito bem onde se escondiam os princípios dos meus desejos. Sei-os. Ela levou o copo à boca e me olhou fundo. Meu nariz se abriu, queria o seu cheiro. Um leve perfume me invadiu, suaves imagens da Índia, do Oriente. Minha mão comprimiu o guardanapo. Ela devia esconder algum segredo. No dedo a lua sorrindo. O anel e a mulher. Respirei, meu nariz começou a coçar. Não sabia mais como usar as mãos. O corpo dela me descorporificou. Seu corpo era Lilith ou Sherazade? Uma mosca pousou na borda do meu copo. Limpou-se, alisou-se como lady enojada... Mosca neurótica, invertebrado com mania de limpeza! Tentei tangê-la, a mão foi mais pesada que o impulso... O copo tombou. A moça levantou-se de vez, o suco dourou a toalha, as pernas dela eram douradas. Olhar duro, sorriso inseguro, sorriso resignado... Tinha perdido a chance? A mosca pousou no meu nariz. Perdi a paciência com o inseto, resmunguei... Agitei as mãos. Quando levantei os olhos, a moça era apenas um vulto saindo pela porta do restaurante. Meu queixo cedeu, a boca ficou entreaberta. Olhar vago... Inação. Uma onda de náusea cresceu dentro de mim, se avolumou e me paralisou. De pé, olhei para o prato sobre a mesa. A mosca higienizava-se em cima de um caroço de feijão. O cheiro do estabelecimento me atordoava. Imaginei uma pocilga: um leitãozinho com a minha cara chafurdava na lavagem que estava sendo despejada por uma linda garota. Quando o corpo dela se curvou para derramar mais lavagem, vi entre as sinuosidades dos seios uma figa dourada. Passaram-se horas em milésimos de segundos. Senti um esbarrão. Confuso, vi uma mulher gorda atravessar em minha frente, carregava um menino feio nos braços. Então me dei conta de que já estava na porta do restaurante. Pensei em ir para casa. Saí repetindo mentalmente três palavras: libido, lufada, lupanar... Tudo inesperadamente. Libido, lufada, lupanar.

sexta-feira, abril 04, 2008

ESTA SENHORA FASCINANTE



Penso que foi Barthes quem disse certa vez que a língua é autoritária, fascista. Que ninguém foge impunemente das regras que ela impõe. Eu, entidade semiótica, aspirante ansioso a homem dos signos, não tenho lá muitas razões para discordar. A gente aprende muito com os tombos até descobrir que nesse terreno é preciso ser meio louco. É preciso exercitar uma desobediência não apolínea, sem justificativas cartesianas.

A língua, quando não é uma espécie de matrona autoritária, comporta-se como mocinha caprichosa, cheia de melindres e de gostos difíceis. Não imaginam vocês que outro dia um aluno sofria na tentativa de querer meter a palavra “músico” no feminino. Padeceu em vão já que a mocinha caprichosa não aceitou a escolha que o aprendiz de escriba fez e, vingativa, tratou de passar-lhe um vexame. Quando o garoto leu seu texto: “Como todos na família eram músicos, Maria não podia deixar de ser música”, a turma caiu na gargalhada. A língua se vingou do insolente, tripudiou publicamente do atrevimento não autorizado. Solidário, o pessoal se uniu para reparar o vacilo do colega. Encontrou o termo musicista e fez a substituição. A língua sorriu sádica e receptiva. Ninguém se satisfez, mas quem somos nós perto dela?

As palavras, então, esses artefatos da língua, não só impõem o que querem como às vezes se insinuam para nos pregarem ciladas. Libertinas e sedutoras, elas se pintam com assonâncias e aliterações. Maquiam-se com tinta semântica insuspeitável. Levantam as saias e nos mostram semas irresistíveis para depois nos surpreenderem com um golpe homonímico, com certeira estocada antonímica ou com a revelação de um mortal segredo anagramático. E como a gente sofre com as agudas dores lingüísticas desses golpes rasteiros. Quem não se lembra do infeliz Aldrovando Cantagallo, personagem de Monteiro Lobato, escravo incondicional da língua e de seus delírios puristas, assassinado impiedosamente por ela com o golpe de um pronome oblíquo bem no coração?

Como disse, os tombos nos ensinam. Depois de tanto apanhar a gente aprende a desconfiar de tudo e passa a ser servo cuidadoso. Há, porém, os que descobrem o ponto fraco da língua e se põem a urdir sonhos de vingança: ela é obcecada pela lógica, tanto que nos fez, mesmo sendo caóticos, criar o mundo lógico, uma prisão, um reino sob seu domínio. Mas essa senhora intransigente é também aquele tipo de pessoa que não aceita ser rejeitada. Aquela natureza de gente que se apaixona quando é ignorada. Por isso é que ela adora os loucos, as crianças e os poetas. Ambos não dão a mínima para suas armadilhas, deitam e rolam nos seus lençóis sintáticos, fazem xixi nos seus cobertores semânticos, atiram pedras contra as suas vidraças significantes, preparam sucos de interpretantes na sua cozinha letrada. Usam e abusam das suas dependências e propriedades na hora que bem querem! Ela, amável, não resiste, deixa-se tomar e os seus súditos sorriem das peraltices desses escolhidos e, para agradar a Vossa Majestade, passam a amar as crianças, os loucos e os poetas.
(alan oliveira machado, em 2005)

CICLOS FUGAZES

Para Líris Gamper Machado

Algumas crianças tumultuavam em minha frente. Vi que não conseguiria ingressar pela portinhola, então recuei dois passos. Minha filha me sorria lá adiante, apreensiva, mas disposta para a aventura. Desci os degraus e virei apenas espectador. O mundo começou a girar. Minha filha passou, rápido, e me acenou feliz. O mundo dava voltas alegres.

Fiquei perdido naquela miríade de cores e verde. De verdes cores talvez. Um pipoqueiro se aproximou, o sorriso simpático me encaminhava certamente para o último pacote de pipocas no canto da carrocinha. Minha filha passou acenando novamente, alegre e um pouco insegura. Concentrei o olhar nas pipocas, instantes atrás eram milhos plenos de potência. Agora, não passavam de pipocas fúteis, anêmicas, mera distração para crianças. Até o cheiro era volúvel e enjoativo. Minha filha passou em minha frente, introspectiva, não sorriu. Endereçou-me um olhar dizendo que contava com o meu apoio.

Sentei-me num banco ao lado de uma paineira, mantive-me parado enquanto o mundo dava voltas. O pipoqueiro sumiu entre as árvores e eu simplesmente fitei aquele pacote de milhos que já não eram milhos, mera distração para crianças, em minhas mãos. Pipocas encardidas que iriam ser devoradas desrespeitosamente por minha filha.

Na copa da paineira, alguns pássaros faziam bagunça. Meus olhos alcançavam apenas pequenas sombras saltitantes, entre folhas e tímidos raios de sol, quando um cheiro adocicado de criança suada impregnou o ar. Olhei para as pipocas amontoadas no aperto do saquinho... Como as coisas são efêmeras... Levantei as vistas, o tumulto havia recomeçado. O mundo parou. Confusão de gritos e vozes. Minha filha sobressaiu a todos. Seus olhos brilhavam. Minha filha é sempre a primeira. Meus olhos brilhavam. Preparava-me para o abraço. As pipocas voaram desordenadas. Impacto feliz! A roda-gigante já não existia mais. Só sabia do calor e do contentamento.

(alan oliveira machado, em 2002)