segunda-feira, maio 12, 2008

DO ACASO AO MISTÉRIO


Como diria Drummond, nasci em uma cidadezinha qualquer. Mas é exatamente nessas cidadezinhas longínquas, onde o tempo congela os hábitos e as cenas cotidianas repetem-se anos a fio que se escondem os mistérios mais fantásticos. Acontece que por trás do fixo dos comportamentos quase sempre desabrocha o inédito.

Regularmente volto a minha cidade natal. Quando ao longe começo a avistar o azul da serra que abriga o vale cruzado por ruas de casas modestas, eclode em mim um tipo de emoção motivada por saudosas imagens da infância. Ao chegar inevitavelmente saio a perambular pelas ruas da cidade e pelos povoados, sentindo o sabor do reencontro. Há um povoado em especial que sempre visitava para ver, no único arruado de casas, o espetáculo dos flamboyants floridos. Cada casa tinha uma dessas frondosas árvores na porta. Com a chegada da primavera, a rua ficava colorida de lado a lado. Era bonito de se ver. Disse era e disse bem, pois o inédito aconteceu.

A última visita que fiz ao Povoado da Lagoa foi melancólica. Em frente as casas apenas os tocos dos grandes troncos. Havia silêncio e desolação. Os flamboyants calaram seu riso colorido para sempre. Na ponta da rua, já perto do brejo, uma pilha triste de troncos e toras de madeira jazia silenciosa como um grande cemitério. Desapontado, parei à porta de uma casa e perguntei ao senhor que ajustava as bruacas num jegue porque derrubaram todas as árvores da rua. O homem olhou-me com certo desconforto. Respondeu, mesmo assim, que uma cigana hospedara-se na primeira casa da entrada da rua e, ao partir, alertara ao dono de que a árvore do terreiro dele era maldita, de que em toda casa com flamboyants à porta iria morrer gente. E era verdade pura, continuou o lavrador, pois o dono da casa morreu um mês depois e, passados quinze dias, a vizinha da segunda casa também descansou das aflições terrenas... Então o medo da maldição tomou conta do povo e as pessoas passaram de casa em casa cortando as árvores amaldiçoadas.

Era inacreditável... Como as pessoas preferem o mistério à coincidência? Parece que a simples imagem da cigana, envolta em presságios e imprecações de oráculo, carregou de medo e sensações sombrias o mero acaso. O desconforto da rua sem suas alegres árvores pagou o conforto da alma daqueles humildes produtores rurais.

Depois de uma muda peregrinação, tomei o rumo da cidade. Já em casa, quando o sol começava a se esconder atrás da serra, fui à padaria da esquina buscar os pães do lanche. Ao lado da porta do estabelecimento alguns feixes de lenha: angico, aroeira e canela de velho. Quando entrei, uma velha conversava com o padeiro: - O senhor num ta usando aquela lenha agourenta, ta? Deus me livre de botar um pão assado com o calor daquela coisa na minha boca! A velha saiu meio desconfiada. Perguntei ao padeiro qual era o problema.: - Ah, meu filho, comprei uma carga barata de lenha de flamboyant lá da Lagoa, aí o diacho do povo cismou de não comprar mais pão aqui comigo. Foi o jeito gastar dinheiro com outra carga. Não sei, mas parece que essa gente não gosta muito do povo da Lagoa. Quem vai lá entender gente, né? Agora tô penando com a freguesia! – De fato, quem vai lá entender gente! – foi o que respondi ao padeiro. Nem sei se valeria a pena contar o resto da história. ( alan, em 2003)

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