sexta-feira, abril 04, 2008

ESTA SENHORA FASCINANTE



Penso que foi Barthes quem disse certa vez que a língua é autoritária, fascista. Que ninguém foge impunemente das regras que ela impõe. Eu, entidade semiótica, aspirante ansioso a homem dos signos, não tenho lá muitas razões para discordar. A gente aprende muito com os tombos até descobrir que nesse terreno é preciso ser meio louco. É preciso exercitar uma desobediência não apolínea, sem justificativas cartesianas.

A língua, quando não é uma espécie de matrona autoritária, comporta-se como mocinha caprichosa, cheia de melindres e de gostos difíceis. Não imaginam vocês que outro dia um aluno sofria na tentativa de querer meter a palavra “músico” no feminino. Padeceu em vão já que a mocinha caprichosa não aceitou a escolha que o aprendiz de escriba fez e, vingativa, tratou de passar-lhe um vexame. Quando o garoto leu seu texto: “Como todos na família eram músicos, Maria não podia deixar de ser música”, a turma caiu na gargalhada. A língua se vingou do insolente, tripudiou publicamente do atrevimento não autorizado. Solidário, o pessoal se uniu para reparar o vacilo do colega. Encontrou o termo musicista e fez a substituição. A língua sorriu sádica e receptiva. Ninguém se satisfez, mas quem somos nós perto dela?

As palavras, então, esses artefatos da língua, não só impõem o que querem como às vezes se insinuam para nos pregarem ciladas. Libertinas e sedutoras, elas se pintam com assonâncias e aliterações. Maquiam-se com tinta semântica insuspeitável. Levantam as saias e nos mostram semas irresistíveis para depois nos surpreenderem com um golpe homonímico, com certeira estocada antonímica ou com a revelação de um mortal segredo anagramático. E como a gente sofre com as agudas dores lingüísticas desses golpes rasteiros. Quem não se lembra do infeliz Aldrovando Cantagallo, personagem de Monteiro Lobato, escravo incondicional da língua e de seus delírios puristas, assassinado impiedosamente por ela com o golpe de um pronome oblíquo bem no coração?

Como disse, os tombos nos ensinam. Depois de tanto apanhar a gente aprende a desconfiar de tudo e passa a ser servo cuidadoso. Há, porém, os que descobrem o ponto fraco da língua e se põem a urdir sonhos de vingança: ela é obcecada pela lógica, tanto que nos fez, mesmo sendo caóticos, criar o mundo lógico, uma prisão, um reino sob seu domínio. Mas essa senhora intransigente é também aquele tipo de pessoa que não aceita ser rejeitada. Aquela natureza de gente que se apaixona quando é ignorada. Por isso é que ela adora os loucos, as crianças e os poetas. Ambos não dão a mínima para suas armadilhas, deitam e rolam nos seus lençóis sintáticos, fazem xixi nos seus cobertores semânticos, atiram pedras contra as suas vidraças significantes, preparam sucos de interpretantes na sua cozinha letrada. Usam e abusam das suas dependências e propriedades na hora que bem querem! Ela, amável, não resiste, deixa-se tomar e os seus súditos sorriem das peraltices desses escolhidos e, para agradar a Vossa Majestade, passam a amar as crianças, os loucos e os poetas.
(alan oliveira machado, em 2005)

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