sexta-feira, março 03, 2006

SÓ SE FOR ROUBADO!

( pra lembrar os velhos tempos!)

Guardo comigo a impressão de que os anos oitenta foram o auge daquela juventude universitária, inclinada ao copo, que atravessava as férias enxugando umas pelos butecos da Canabrava. Volta e meia essa estudantada se reunia em um barzinho específico, proseando sobre política, cultura entre outras variedades. Os estudantes, uns vindos de Salvador outros de Brasília, formavam uma verdadeira irmandade, com muita alegria, discussão e praticamente nenhuma desavença.
Houve um final de ano, especialmente, em que tava na moda roubar galinha pra fazer farra. Fato é que esses jovens adotaram tal prática e quase toda noite, lá pras tantas, a coisa se concretizava. Era assim, a turma se encontrava numa dessas biroscas pra tocar violão e comer água; prosear e contar causos, molhando a palavra e estalando os beiços, segundo alguns. A certa altura, um pouco depois das 23 horas, 32 pingas e algumas dezenas de cerveja, escolhiam a casa da vítima. Em seguida, determinavam quem iria seqüestrar irreversivelmente os galináceos e os que preparariam o banquete, a farofada de feijão verde ou andu. É de se imaginar o cheirinho de coentro e cebolinha roxa que exalava misturado ao aroma da penosa devidamente preparada. Isso tudo bem mexido numa bacia de tamanho razoável, com o grupo em volta comendo, feito tapuia, bolinhos amassados à mão e resenhando os incidentes e percalços do empreendimento bem sucedido.
Vale dizer que esses exímios ladrões de galinhas assaltavam geralmente suas próprias casas. Havia, porém, os que compravam as aves na feira, preparavam e levavam na noite seguinte já com o enredo do roubo inventado na cabeça. Sem contar que determinadas mães, escoladas nas habilidades dos filhos, sutilmente deixavam as galinhas amarradas pra facilitar o furto.
Vai que um dia eu, menino curioso, sempre na cola da novidade que eram os estudantes, testemunhei uma empreita desastrada. Lá pelas três da madruga, no calor da algazarra, neguim já cantando serenô eu caio, eu caiô, mais em espanhol que em português, como se diz: com bolas de gude debaixo da língua, um parente meu, cheio até a tampa, intimou o bando a roubar uns patos lá em casa. A intenção era comê-los no Banheirão. Ali num canto, apertando os olhos pra espantar o sono, eu ouvia o planejamento da turma numa linguagem meio babelesca, ao que parece, bem entendida por quem encontrou a molhação. Moleque. Ignorado. Um cisco... Ainda assim, por trás da leve cortina de sono, eu não ignorava o belo sorriso maroto de uma certa Lúcia.
Não durou muito, a cambada desceu o Cascalho chutando pedras, equilibrando-se entre soluços, risos bacantes e muita indaga. Lá atrás, um sujeito da CEU, estreitando a rua, gritava com voz mole: - Bebo porque é líquido! Mais adiante, outro da Ceubras, trocando as pernas, respondia com dionisíaca entonação: - Se fosse sólido eu comeria! O barulho, se brincar, dava pra ouvir na Lagoinha. É assim mesmo, bêbado só se dá pela necessidade do silêncio quando já acordou meio mundo. Nisso foi que chegando à porta lá de casa veio uma chuva de –Psiu, fala baixo! Seguida de risinhos cujo baixo volume só existia mesmo na cabeça daquelas almas recendendo a álcool.
Na ilusão do silêncio, entraram peitando tudo. E foi um fuzuê danado pra pegar esses patos. Bêbado enganchado em arame de cerca. Um tal de pega-solta... Cai-aqui-tropeça-acolá... Uns tentando achar o cerebelo... Pato escandalizando... Moça de pernas pro ar... Neguim espojando... Outros catando nica... Pena pra tudo quanto é lado... Aí pronto! Serviço terminado. O bando já ia saindo com dois patos bem apanhados quando deu de cara com Dona Maroca escorada na porta dos fundos. Ela, pelo visto, assistia há algum tempo a peleja dos meninos. E bota peleja nisso. A cambada nem percebeu que havia amanhecido. Fora eu, que permanecia como espectador, acompanhando o desenrolar da cena, o conjunto de bebuns lembrava a tela Os retirantes, de Portinari: todos sujos e mulambentos. Meu irmão na frente, já meio descachimbado, soltou o pato que trazia debaixo do braço. Aí minha mãe interveio, com um esboço de sorriso compreensivo: - Leva o pato, meu filho! No que meu irmão, mal disfarçando as involuntárias contrações diafragmáticas, respondeu com uma ponta de indignação etílica: - Agora não serve mais, só prestava se fosse roubado!
(alan oliveira machado)

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