sexta-feira, abril 11, 2008

A SOLIDÃO CARREGAVA UM LOUCO

alan oliveira machado, 2002

Hoje, em minha biblioteca, enquanto organizava alguns papéis velhos, encontrei uma fotografia amarelada, com data do final dos anos setenta. Nela, rompendo o pedregulho rústico da rua nova de Uibaí, uma figura enigmática, Chico de Elói: franzino, careca, cabisbaixo, descalço e maltrapilho, braços ao longo do corpo e, como de costume, dedos, indicador e médio, tensos e entre cruzados, como quem segurava um cigarro imaginário.

Fitando a foto, não evitei o transe romântico que nos faz evadir nas memórias da infância, tendo por desfrute uma suave sensação de prazer. Mas, desembarcando do devaneio romântico rumo à objetividade realista, a fotografia fez-me refletir sobre a diferença, porque aquele personagem cuja imagem ficou registrada no amarelado do papel era uma diferença e como diferença certamente muito deve ter perturbado a nossa linearidade lógica: rica em estupidez e pobre na percepção do mundo. Aquele “doido”, como muitos que caminham solitários - ainda hoje - pelas ruas das cidades de nosso país, um dia, pela luz de seus gestos, deixou em crise os nossos valores, pôs-nos a concluir que o trilho que seguimos, o vagão no qual embarcamos a nossa existência não passa por todos os lugares, traça apenas uma reta insossa, uma monótona trajetória. Provou-nos que ser gente ultrapassa as cercas da razão. Aquele “louco”, como muitos, agrediu a nossa frágil ilusão de ordem. Suas atitudes descascaram o verniz da nossa razão, fazendo-nos sofrer a violência de existir.

Travestimos, então, a dor de saber que a vida é absurda em ódio contra o “louco”, contra a diferença: ou o colocaríamos no trilho ou o mataríamos. Ou o isolaríamos ou simplesmente o encaixaríamos na locomotiva da nossa existência como uma peça inútil, ridícula e bufa. Como inúmeros outros, nisto se transformou talvez aquela imagem triste e solitária da fotografia: no objeto do nosso medo, do nosso ódio transformado em sarcasmo, em deboche. Por essa via, domesticamos a diferença de modo a não mais nos sentirmos ofendidos por ela. Daí em diante, todo ato do “louco” que nos enchia de cólera passou a nos fazer sorrir. Toda pedrada que ele dava em nosso espelho racional gerava o tolerante deixa pra lá, fulano é louco!

Porém, por mais que tentemos ignorar, “louco” é tudo aquilo que somos e negamos ser. É tudo aquilo de proibido que se passa diariamente no recôndito de nossas ações e pensamentos. Todos sabemos disso e quanto mais sabemos mais repelimos o “louco”, mais o afastamos, mais alargamos o fosso da diferença dentro de nós. Aqui, vale dizer: esquizofrênico é o indivíduo fendido, dividido. Aquele que vive em um mundo “real” e se comporta como se estivesse em outro, ou seja, todos nós somos “loucos”, “loucos” segregando “loucos” e quem não for “louco” que atire a primeira pedra!


ADENDO

Chico de Elói era meu primo. A crônica sobre ele vem de imagens da minha infância em Uibaí. Foi espreitando a solidão de Chico que me descobri tão só quanto ele; que descobri não existirem pessoas menos sós do que nós dois, que percebi a necessidade de amar os "indivíduos" no que eles têm de singular, independente do atropelo que outro provoca em mim cotidianamente. O infortúnio de Chico foi fazer pouco da ilusão coletiva em que vivemos (não de propósito, creio) ou talvez o infortúnio nosso seja supervalorizar o que ele desprezou.

Uma vez encontrei Chico no Beco de Braulino e ele me olhou com os olhos grandes e inquisitivos, típicos da nossa família, e disse, talvez me reconhecendo como um dos seus: "ontem eu vi um homem todo verde... O cabelo era verde, a pele era verde; quando ele sorriu, o sorriso era verde, então ele falou e a fala era verde e ele caminhou e o caminhado era verde..." Passei muito tempo tentando imaginar esse homem que Chico teria encontrado.

Outra vez, ele disse que viu uma cobra se engolindo pelo próprio rabo até desaparecer completamente. Achei intrigante a imagem. Muitos anos depois, encontrei em um livro de Carl G. Jung a figura simbólica do uróboros, uma serpente mordendo o próprio rabo, se não me engano, símbolo ao mesmo tempo da completude, da perfeição e do infinito... Então liguei as duas histórias e passei a imaginar que Chico tinha um desejo muito grande de harmonia e de regularidade, coisas que o nosso mundo não lhe oferecia... No homem tudo era verde... Na cobra, a auto-suficiência entrópica... (alan, 2005)

4 comentários:

alhures disse...

Você, seu maldito nietzschiano, você pode falar dessas coisas que guardou tão bem. Você, tão acostumado a tudo destruir, tudo arrebentar, tudo negar. Você, primo de Chico de Elói, primo de Zaratustra, primo do diabo...
Eu gosto de ti, meu velho!!!
Talvez porque eu me veja em ti, na tua força, na tua coragem,na tua existência estupidamente igual a tantas, e , no entanto, tão diferente...
Oz.

Celito Regmendes disse...

recentemente um grupo de garotas do colegio estadual me procurou pra realizar uma entrevista acerca de CHICO DE ELÓI , trabalho escolar pedido pela professora valdineia ( de história),perguntei a ela o por q do trabalho, ela me disse se tratar de uma tentativa de fazer com q as novas geraçoes conheçam personagens históricos daqui, o q tais pessoas "especiais"(chamados de doidos, tolos e cia)deixaram como legado...

após responder um questionario de 30 perguntas, disse a elas q todo uibaiense com mais de 40anos vivenciou ou conhece uma ou mais "histórias" ligadas a meu tio chico de eloi q dentre outras coisas deixou uma marca em minha barriga fruto de um chute desferido depois de dizer q não gostava de me v na casa de sua irmã-vó jovita- pois NEGO naõ podia ser parente dele), algumas histórias fantasticas, varias delas coicidentemente ou sei lá o q apareceram depois em livros e cia como de sábios ou mesmo apenas do tal DOMINIO PÚBLICO...

vou sugerir esse texto pra elas!!!

Alan Oliveira Machado disse...

Obrigado, Celito. Aproveito para perguntar se você tem informações sobre uma tal Sofia Machado Miranda que viveu em Uibaí há muito tempo!

Celito Regmendes disse...

sophia machado miranda?? ihhh não me lembro não, mas com certeza é parente sua ja q quem assinava MACHADO MIRANDA era os descendentes de ZE MIRANDA( filho de venceslau), ze miranda era seu trisavô paterno...