sexta-feira, abril 28, 2006

MEMÓRIAS DE UMA RUA ABANDONADA



Aos eternos moradores do Cascalho

O Cascalho é uma rua curiosa. Por um momento a gente pensa que ela é extensão da Rua Grande, já que o leito do Riacho Canabrava atravesa a Matinha e segue sinuoso pelos fundos dos quintais até despontar lá adiante próximo à entrada do Cancarote. Se realmente fosse a continuidade da Rua da Igreja teríamos de dizer, para fazer justiça, que ela é a continuidade abandonada em todos os sentidos. Entretanto, como todo abandonado aprende a sobreviver, a gente vai ver que o Cascalho sempre teve abundância de vida e de tudo.
Até os anos oitenta, quando o candeeiro ainda era uma necessidade para muitos, o cidadão podia encontrar na esquina do prédio velho, a fábrica de seu Zuza Flandeiro sortida de vários modelos dessas rústicas luminárias. Podia também encomendar roupas da moda à costureira Bernadete. Descendo mais um pouco, ao lado de Belita de Ricarte, quem precisasse de algum móvel poderia encomendá-lo na marcenaria de Argeu. Passando uma ou duas casas havia a sapataria de Mané Sapateiro, aliás, a rua contava ainda com a sapataria de Garibalde, em frente à casa de Sinezão.
Tamboretes tembém você encomendava no Cascalho, lá na tamboreteria de Deblande, em frente á casa de Dona Maroca. Ali se encontravam os mais resistentes tamboretes feitos de são joeiro maduro. Deblande, com mais de um metro e noventa de altura, nas horas vagas atuava como juiz de futebol, no único campo da cidade, também privilégio do Cascalho. (nessa época ainda nem existia o Betonicão, lá na saída pra Hidrolândia) O filho da velha Cândia era um juiz desprovido de apito, mas durante o jogo carregava uma peixeira feita de Corneta engastaiada na cintura, proporcional ao seu tamanho. Mediante aquela prova concreta de autoridade, ninguém questionava a arbitragem. Quem teve o prazer de assistir aos sensacionais jogos do Fluminense de Uibaí, com Chiquinho de Jaime no gol, Sinozinho, João de Odetina, Quinquinha no ataque e Chiquinho de Paulo zagueirão, principalmente aos treinos, sabe do que eu estou falando. Suspeito que Deblandão só atuava nos treinos.
Desculpem-me a irresistível digressão, estava falando de tamboretes. Pois bem, quem não quisesse os tamboretes de Deblande poderia encomendá-los em Leno Sanfoneiro, mais embaixo, próximo à casa de Domingo Dodô, este, um maluco que descia o cascalho com uma bicicleta barra circular em toda a velocidade, atravessando tudo quanto é batume de mato, indo parar na porta da casa de Leno, com os dois pneus furados, cravejados de espinhos de malva de garrote. Era uma diversão meio sem lógica, mas a gente sabe que maluquice dispensa lógica. Voltando novamente aos tamboretes, Leno, além de fabricar esses importantes utensílios, ainda fazia a fezinha na sanfona, animando uma ou outra farra.
Tanto da casa de Dona Maroca quanto do ranchinho de enchimento de Jubilino, criador de toda espécie de pássaro canoro, dava pra ver quase que frontalmente, entre a saída para o Janjão e a entrada para a Veredinha, a venda de Dona Antônia, mãe de Marinezão e Tineco, entre outros. Era uma birosquinha, mistura de venda e bar. A velha administrava a família com pulso firme, num sistema de matriarcado absoluto. A ela pertencia ainda a única casa de farinha da cidade, também no Cascalho, pouco abaixo do Curral da Matança, do outro lado da rua.
O Curral da Matança era um curral velho feito de madeira de lei no qual os bois ficavam recolhidos esperando o abate. Dia de abate dava uma mistura de medo, prazer e aventura ver aqueles bichos furiosos, como que pressentindo a morte, sendo laçados pelos vaqueiros Jaimim e Domingo Paieiro. A meninada ficava atônita diante de homens domando a força bruta, com igual brutalidade. Tudo ali no Cascalho, o bicho imobilizado levando uma machadada no cachaço ou um tirão de rifle bem no meio da testa.
Subindo a rua, a partir do Curral da Matança, ao lado da casa de Deblande, havia o chiqueiro de Verneú, um criatório grande que misturava caprinos, ovinos e porcos de raças variadas: Duróc, Piau, Baé, Beradeiro. O cheiro não era dos mais agradáveis, porém, em manhã de venda e capa de porco era divertido ficar trepado na cerca de sisal vendo os homens estabanados atrás dos bichos. João Capa Porca afiando o canivete e os gritos do suíno sendo emasculado ou esterilizado.O porco sem bagos saia meio envergonhado e a porca sem ovários meio esguia e acanhada. Na pesagem havia cada porcona de quinze arroubas desafiando os pesos da balança que era de se admirar. Hoje, a travessa que liga o Cascalho àquela construção faraônica inacabada, que dizem ser de um ex-padre, ocupa exatamente parte do espaço do antigo Chiqueiro de Verneú.
Mais acima, muito depois da casa de Dona Nair de Valdivino, onde de manhã cedo se buscava o leite fresquinho saído da ordenha, quase no meio da Rua do Cascalho, tínhamos o mais generoso pomar de Uibaí, a casa de Dona Mariinha de Leandro, com um cercado imenso sortido das mais variadas fruteiras. Na casa da bondosa e paciente Dona Mariinha sempre era tempo de alguma coisa. Quando não era de manga, era de pinha, quando não tinha pinha, tinha caju ou serigüela ou côco. A meninada se fartava em cima dos pés de manga-mamão, nos pés daquela manguinha miúda fiapenta e deliciosa, debaixo dos cajueiros ou atirando pedras nos coqueiros muito altos, em busca de cocos velados.
Para quem achava que a vida não deveria ter muita graça numa rua abandonada como aquela, aviso agora que nem falei do parque de vaquejadas que existiu por ali, nem do alarido de carros e cavalos com toda sorte de gente vinda dos povoados no dia da feira. Nem das manadas bovinas que se encontravam a caminho do pasto, obrigando os marruás dos rebanhos a encenarem um espetacular duelo de chifres e forças em plena manhã de primavera. Nem das vacas paridas escorraçando transeuntes desavisados e botando gente nos pára-peitos de portas e janelas; nem em Zé de Nica cantarolando pela rua suas canções de Roberto Carlos, alheio a tudo e a todos ou em Hora é Esta, saudoso personagem, entoando diuturnamente seu refrão, como um relógio cuco: -A hora é esta! Ou em Seu Genéis, pai de Dona Zilda e de Dimari, um homem de força descomunal que, já sexagenário, arrastava Cascalho acima uma árvore seca inteira, trazida sabe-se lá de qual distante capoeira, para cortar no machado diante do ranchinho em que morava; ou no negro Soizinha, pagodeiro, cheio de manha africana e superlativos, figura simpaticíssima. Muito há do que se falar sobre aquela rua de minha infância e adolescência, a única atualmente a contar com juazeiros frondosos a derramar suas sombras frescas sobre o abafado da tarde.
O nome pomposo de general, o povo rejeitou e fez bem. Rua que tem vida não merece nome de general, a bem da verdade, nome nenhum que cheire a imposição. Rua que tem vida se autonomeia. E é isso que acontece, não se vê gente falando na rua General Costa e Silva. Prefere-se a metonímia feita da matéria que talvez mais importuna o povo: o cascalho pedregoso que levanta uma poeira branca e incômoda, a medida em que os carros vão passando. Eis a Rua do Cascalho que também aceita ser chamada de Rua Pé de Galinha, nome inventado por Ri de Valdivino, quando este observou corretamente que a rua se abria como um pé de galinha: um dedo seguindo em direção ao Mane Janjão, outro seguindo para a Veredinha e um último indo rumo a Boca Dágua.
(alan oliveira machado, abril de 2006)

Um comentário:

Anônimo disse...

Alan

Ligue pra mim.
Bjo