sábado, dezembro 29, 2012



MONTEIRO LOBATO E A PATRULHA BOCÓ 

Prof. Alan Oliveira Machado

            Há pouco tempo houve uma polêmica envolvendo o MEC e o Conselho Nacional de Educação com respeito ao conteúdo racista de algumas passagens do livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato. Um ativista do movimento negro encaminhou denúncia a instâncias do governo pedindo a retirada do livro da lista de obras do MEC e cobrando seu banimento das salas de aula.
            Imediatamente, comandos ideológicos do movimento negro iniciaram uma patrulha para excomungar a obra de Monteiro Lobato. E o que se viu foi gente que nunca leu uma página da literatura lobatiana alimentando certo apedrejamento simbólico e insano do escritor.
            Monteiro Lobato é, sem dúvidas, o maior escritor de literatura infantil das Américas. Talvez o único que desde os anos 20 do século XX se comprometeu em produzir uma obra exclusivamente para as crianças, mas sem a visão distorcida da infância reinante na literatura voltada ao universo infantil daquela época. A obra de Lobato, nesse quesito, é plural, criativa e educativa. Tanto é que faz sucesso em muitos países. Em alguns, como a Argentina, é mais lida e reverenciada do que no Brasil. Mas, inevitavelmente, em certos aspectos, a criação infantil desse escritor é produto de uma época. Isso não diminui sua inventividade e nem o seu valor, porém nos força a ser criticamente mais cuidadosos com certos aspectos ao empreender sua leitura. E não é assim mesmo que se deve proceder com qualquer leitura?
            No livro Caçadas de Pedrinho, algumas expressões com negativa tintura racial utilizadas por Lobato, ao se referir à personagem Tia Nastácia, soariam com naturalidade nos anos de 1930, quando o livro em questão foi escrito. Entretanto, para os padrões culturais contemporâneos tais expressões são grosseiras e visivelmente desrespeitosas com o negro. Mas isso não justifica o banimento do livro. Não se pode ignorar as muitas virtudes da obra infantil desse escritor paulista em função de um aspecto negativo. A educação que prepara o ser humano crítico não exclui as falhas humanas do espaço de formação da criança, pelo contrário, as traz para a arena da sala de aula e as transforma em conteúdo educativo. Se não fosse assim, a obra do filósofo grego Aristóteles que reproduz uma visão terrível da mulher para os padrões de hoje, aspecto do seu pensamento perfeitamente comum no contexto grego de sua época, lhe tiraria a posição de maior pensador do mundo ocidental de todos os tempos e isso ninguém com neurônios funcionando cogitaria imaginar.
            As patrulhas ideológicas são vozes críticas e contrárias em plena ação. Se fosse só essa sua natureza seria uma maravilha, contudo patrulhas não raro boiam na superficialidade, são indissociáveis de comportamentos autoritários e invariavelmente adeptas da monocultura do saber, no caso o seu próprio. Assim, tendem a querer eliminar o conteúdo que contraria o seu posicionamento em vez de transformá-lo em objeto de formação crítica. O MEC e o CNE não cederam a esse lado bocó das patrulhas. Optaram acertadamente por manter o livro Caçadas de Pedrinho na lista das escolas, orientando os professores a debaterem seu ponto negativo e assegurando aos alunos o convívio com suas muitas virtudes.
            Em virtude dessa polêmica, aproveitei um tempinho à tarde e reli Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato. Foi bacana reencontrar o texto de Lobato com o mesmo sabor de infância de quando o li aos treze anos, numa leva de livros que minhas irmãs trouxeram para casa nas férias de final de ano. Fui reler  Caçadas de Pedrinho para tirar a limpo a conversa de um desses militantes negros que tentou vender a história de que o livro era racista e coisa e tal. Se a gente fosse  dar crédito ao alarde que fizeram  era o caso de se imaginar que o livro é um manual de racismo. A lembrança que tinha da leitura dessa obra de Lobato não correspondia ao exagero do militante racialista, portando achei melhor voltar à história do inventor da boneca mais sabida da história da Literatura Infantil.
       O que constatei foi que só há duas míseras expressões dirigidas à personagem Tia Nastácia, em todo o livro, que podemos constatar como sendo de mau gosto pelo tom racial que pode aventar. Nesta fala de Emília: Não vai escapar ninguém - nem Tia Nastácia, que tem carne preta. E mais à frente, quando as onças atacaram o sítio de Dona Benta e Tia Nastácia subiu apavorada em um mastro, aparece a segunda expressão que os militantes negros consideraram a mais infeliz, descrevendo a ação da referida personagem: trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro...  Há quem conteste o conteúdo racial dessa segunda expressão afirmando que Lobato se referia ao modo hábil como Nastácia, movida pelo medo, escalou o mastro. Macaca de carvão não se refere à cor da personagem, mas a uma espécie ágil de primata conhecida como mono carvoeiro ou macaco de carvão. Tal espécie inclusive tem pelo dourado, conforme a foto. 
            Nas quarenta e três páginas da edição de Caçadas de Pedrinho que tenho aqui em casa, as duas expressões a que me referi são as únicas com tintura racial preconceituosa, se considerarmos a questionável segunda expressão. Mas o livro é tão interessante e a leitura flui com tanta naturalidade que as expressões perdem-se na névoa da insignificância em meio a uma reflexão atual sobre a relação do homem com a natureza que em certos momentos nem parece  feita no longínquo ano 1933: Os homens andam a destruir todas as matas, a queimá-las, reduzi-las a pastagens para bois e vacas
            Quanto à onça que a turma do sítio matou, motivo pelo qual os politicamente corretos condenam o livro por dar mau exemplo, a resposta sobre tal ato Monteiro Lobato põe na boca dos animais da mata: Ora, isto é crime que pede a mais completa vingança. Guerra, pois! Guerra de morte a essa ninhada de malfeitores. Essa capacidade de interpretar a realidade de modo crítico, mas sutil nas histórias para criança que o criador do Sítio do Pica-pau Amarelo dilui em sua obra parece não estar ao alcance das patrulhas ideológicas, quase sempre patinando no grosso da superfície. O conteúdo de Caçadas de Pedrinho não é racista e qualquer ser inteligente pode constatar isso a menos que esteja entorpecido por uma cegueira racialista muito distante do bom senso.

sábado, dezembro 15, 2012


BOBAGENS LOGICISTAS
                        
            Outro dia li um artigo do simpático professor Pasquale Cipro, na Folha de São Paulo, no qual ele tratava de algumas expressões a que chamava de bobagens. Dizia Pasquale que “correr atrás do prejuízo”, forma cristalizada na fala cotidiana do brasileiro, é uma bobagem porque ninguém corre atrás de prejuízo, mas sim de lucro. O professor apega-se a um princípio lógico básico para se posicionar contra tal uso popular, qual seja: julgar os elementos do plano da expressão pelo sentido referencial que eles adquirem dentro do estrito campo de combinação do enunciado. Mas vejamos: se é tão óbvio que ninguém corre atrás do prejuízo, não daria para o professor Pasquale, usando a mesma lógica, concluir que a expressão “correr atrás do prejuízo” veicula outro sentido, pelo que se pode observar, próximo ao contrário do significado literal de “correr atrás do prejuízo”? Pelo que pude constatar, numa rápida pesquisa, “correr atrás do prejuízo” parece significar, para os usuários de tal expressão, algo como “se apressar em resolver problemas pendentes de modo a evitar um prejuízo ou para amenizar os efeitos de um prejuízo”.
            O que o ilustre professor Cipro faz é usar um raciocínio bobo para julgar certos usos linguísticos como bobagem. Na verdade, não há nada de bobagem em usar tais expressões. A língua está cheia delas. Se formos dar crédito para a lógica rasa do professor, teremos que deixar de usar uma série de catacreses e formas linguísticas cristalizadas no português brasileiro porque elas não têm o sentido que se poderia depreender de sua observação literal. Teríamos que abandonar, por exemplo, o uso da expressão “via de regra” uma vez que literalmente quer dizer “canal por onde passa a menstruação”. Bobagem! Bobagem! Bobagem!
            Na mesma toada logicista já havia presenciado, num seminário de comunicação, o jornalista Alexandre Garcia, da Rede Globo, falar com certo orgulho, como se tivesse feito uma descoberta maravilhosa, que não se deve falar “correr risco de vida” e sim “correr risco de morte”. Que eu saiba, não há como colocar a morte em risco. Por outro lado, não posso falar a mesma coisa da vida, pois são incontáveis os vacilos que podem colocá-la em risco. Não fica difícil então concluir que é a vida que se pode por em risco, não a morte. Mas naquele seminário, o jornalista expressava-se com uma ênfase tal que parecia querer passar sermão na plateia incauta, certamente usuária de mais esse “abuso de linguagem”.
            Saí do auditório em que o loquaz jornalista pregava e fui consultar o povo que transitava pelo pátio da universidade para saber o significado de “correr risco de vida”. Não foi surpresa constatar, depois de perguntar a várias pessoas, que “correr risco de perder a vida” tenha sido a resposta predominante. Pelo menos uma coisa pode-se postular a partir da resposta mais escolhida pelos transeuntes: “correr risco de vida” é nada mais que “correr risco de perder a vida” depois de sofrer o processo de elisão do sintagma verbal “perder a”. O lamentável mesmo é constatar que essa tolice propagada pelo jornalista global ganhou crédito de muita gente de jornal e televisão. O que tem de gente correndo risco de perder a morte por aí, ou expondo a morte em risco não se conta.
            O que eu sei mesmo é que, via de regra, temos que dar um chega pra lá nesse tipo de argumento que gruda numa lógica claudicante e se esquece de enxergar a língua vivinha passeando pela boca do povo. Prof. Alan Oliveira Machado

sábado, dezembro 01, 2012




DO OUTRO LADO DA RUA

O nome do bar era Aula Vaga, mas, com justiça, bem poderia ser chamado de Qualquer Aula... Ficava numa esquina a uns trinta metros do portão da universidade e num fim de tarde de muitos, durante o horário das aulas de Teoria da História e Filosofia Contemporânea, lá estavam duas almas solitárias no puxado do boteco, separados por copos cheios de cerveja e unidos em divagações. Um da Filosofia, com cabeça raspada e um forçado e juvenil bigode nietzschiano enfeitando o semblante romântico melancólico, o outro mal barbeado e com longos cabelos heavy metal meio pastosos era da História e gesticulava enquanto enforcava um cigarro de bali entre o dedo indicador e o polegar. -O tempo é uma ficção, velho! Só há linhas de fuga e tangentes e máquinas de linguagem reinventando o nada sobre o nada, saca!! Desabafou o estudante de bigode nietzschiano.
-Nada a ver, disparou o Hobsbawn roqueiro de araque: -Esse é um papo homem bomba! E eu posso muito bem datar esse engodo metafísico ao longo dos anos! E ali ficaram os dois atirando farpas lambuzadas de cerveja e defumadas pelas piores cigarrilhas do campus. Então desabou um aguaceiro forte. A chuva formava como que uma cortina de ferro entre o puxado do bar e a portaria da universidade, o tempo feio separava aquela metafísica etílica da outra concomitantemente semeada do outro lado da portaria do campus, como se fossem duas ideologias antagônicas. Foi então que o homem bomba da filosofia deixou despencar o ar melancólico do rosto e danou a babar a chuva: -Veja aí, velho, essa chuva é uma dádiva, saca! É algo que suspende o deserto niilista da existência e impõe o tumulto verde da vontade de potência... Essa coisa que faz a gente assoviar sem saber por que e gargalhar para o mato molhado, saca!! A chuva é o melhor... É a afirmação... É a volta por cima dos desvalidos, saca!! Sorria, velho, sorria!!! E deu uma gargalhada e quis dançar pelo puxado do bar lembrando Zaratustra. O historiador roqueiro apenas olhava e sorvia longas tragadas do décimo cigarro. Aos poucos, a chuvarada recuou fazendo uma ou outra estrela furar o turvo do céu e então o bar se encheu de mariposas, aleluias e formigas de asas e a luz decadente que pendia sobre a mesa dos dois pensadores virou uma festa caótica de insetos que fez o tal filósofo amaldiçoar a chuva com os piores palavrões. 19-11-2012