QUANDO A INTENÇÃO É SÓ
DOUTRINAR
Na atividade de analista de discurso, aprende-se a lidar tanto com o silenciado quanto com o dito. Ocorre que toda materialização de linguagem se dá por meio de escolhas, conscientes ou não, e essas escolhas silenciam outras possibilidades do dizer que insistem em rondá-lo (nem sempre em boa hora) de tal forma que o sentido do dito tem sua constituição fundada nessa relação entre o que se disse e o que se calou. Todo esse jogo faz muitos sentidos circularem, mas os usos que se fazem deles nem sempre correspondem ao contexto imediato no qual circulam.
Prof. Alan Oliveira Machado
Na atividade de analista de discurso, aprende-se a lidar tanto com o silenciado quanto com o dito. Ocorre que toda materialização de linguagem se dá por meio de escolhas, conscientes ou não, e essas escolhas silenciam outras possibilidades do dizer que insistem em rondá-lo (nem sempre em boa hora) de tal forma que o sentido do dito tem sua constituição fundada nessa relação entre o que se disse e o que se calou. Todo esse jogo faz muitos sentidos circularem, mas os usos que se fazem deles nem sempre correspondem ao contexto imediato no qual circulam.
Outro dia presenciei um professor de
história advertindo um seu interlocutor, de forma inadequada, sobre o uso do
termo “denegrir”. O uso do termo “denegrir” utilizado na discussão pelo
interlocutor não estava referencialmente sendo tomado no sentido racista com o
qual foi muitas vezes empregado no séc. XIX. O alerta do professor de história
é que forçava essa interferência, forçava essa relação com a memória.
A palavra denegrir, originada da
raiz latina niger que significa
“negro”, foi difundida dentro da mentalidade escravocrata que, para justificar
a escravidão, classificava os negros escravizados como animais, sujos e
degenerados. Assim, denegrir, que etimologicamente significa sujar, manchar até
ficar com cor escura, negra, sem qualquer tintura racial, naquela época
(institucionalmente escravista), ganhou uma oportunista conotação étnica e
passou a ter o significado de tratar alguém como se fosse negro, ou seja,
“sujo, degenerado, animalizado”. Isso quer dizer que a palavra tem esse lastro
na memória, mas quer dizer também que a memória traz consigo as condições de
produção do sentido da palavra para a época e que na atualidade essa memória
não cabe em qualquer contexto. Há inclusive quem conteste a conotação racista
do lexema “denegrir”. O escritor Eduardo Martins, por exemplo, ao defender que
nem todas as expressões se referem ao negro como etnia, diz que a palavra
denegrir surgiu no século XV, portanto, antes da escravidão no Brasil. A
informação é correta, embora não sirva aqui como argumento.
Em Semântica, disciplina ainda
ligada à visão imanentista da linguagem, o que aconteceu com tal vocábulo seria
chamado de mutação semântica diacrônica, isto é, quando a palavra muda de sentido
com o passar do tempo, chegando a um novo momento histórico com uso e sentido
distintos do original. Foi o que aconteceu com o termo “amante” que até início
do século XX referia-se positivamente a alguém que ama e hoje se refere a
alguém que participa de uma relação adúltera.
Assim como o uso do termo
"amante" não permite atualmente entendê-lo como "aquele
que ama", sob pena de se criar sérias indisposições sociais, o mesmo
pode-se pensar sobre "denegrir" quando rotulado como termo racista.
Por essas e outras razões deve-se fazer uso cuidadoso das palavras, mas não
necessariamente condená-las com base em seu passado infeliz, ainda que
verdadeiro. Do contrário, teríamos que abandonar grande parte do vocabulário em
uso na atualidade. Vejamos, a título de exemplo, o étimo de algumas palavras
bem populares: trabalho, do Latim, tri paliu, ou seja, três paus, castigo imposto pelas tropas romanas
aos exércitos derrotados, que consistia em fazer os membros desses exércitos
rastejarem sob um estrado feito com sequências de três lanças romanas. Dócil,
doçura, do Latim, docere, aquele que
se deixa submeter, qualidade de quem é submisso. Cretino,
proveniente de um dialeto franco-provençal dos Alpes Suícos, cretin, referente a cristão, pessoa
aparvalhada, de raciocínio lento, tola. O sentido se deve ao fato de os vários
cristãos fugidos de regiões com baixa taxa de iodo no sal terem desenvolvido
uma espécie de tireoidismo que os deixava com aparência de tolos, tontos...
Agora, raciocinem comigo: faz sentido apelar para a origem dessas palavras como
forma de repreender seu uso, taxando-o de preconceituoso etc., etc., etc.?
Se em termos de linguagem não faz
sentido esse tipo de perseguição a palavras, seria essa uma prática
fundamentalmente ideológica? Seria uma muleta de discussão com a finalidade de
exercer controle sobre os outros? Seria uma forma de criar argumentos para
rotular adversários? Se for é ridículo, é coisa realmente de quem não tem
argumento, de quem não tem interesse algum em enriquecer a discussão, mas tão
somente dominar o adversário.
A esse respeito, lembro-me de que,
outro dia, estando presente ao lançamento da biografia de um advogado ilustre, por
mim revisada, um professor chegou a dizer que eu, como um dos revisores,
deveria ter corrigido a expressão “anos negros da ditadura”, constante no tal
livro, porque o vocábulo, “negros”, fazia referência pejorativa a cor. Tem
dissimulação de ignorância mais estranha do que essa? Todo mundo sabe que a
expressão, “negro”, no sentido de cor, tem histórico negativo milenar. Está lá
nos bestiários medievais, nos textos pré-socráticos, nos textos de origem
persa, egípcios, chineses e indianos. Assim, o termo está apropriado ao
contexto em que foi posto. Não fere a ninguém além dos ditadores. Estou vendo a
hora de esse pessoal começar a discriminar pessoas que botam luto pela morte de
algum ente querido por estarem associando a cor preta à morte, à tristeza e à
dor. Ainda bem que a língua não se submete facilmente a esses delírios de
milícia.
Simbolicamente, vê-se que a
expressão, “negro”, foi utilizada em “anos negros da ditadura” com o mesmo
sentido que a cor aparece no "luto" acima referido, ou seja, com
sentido de tristeza, dor e perda. Mais que isso, como ausência de luz,
contrário ao dia, levando-se em conta o dia como sinônimo de vida, uma vez que
o sol é responsável pela progressão e sustentação do ciclo vital. Esse uso
insinua que a vida foi podada no período militar, que aquele período foi de
tristes perdas. A simbologia, embora tendenciosa, é coerente. Seu uso se deveu
à necessidade de marcar um posicionamento ideológico com relação às práticas do
regime militar. E esse uso é visceralmente humano. Agora, despropositado é
querer fazer hegemonia discursiva, “patrulha ideológica” com esse tipo de
argumento. Banalizar o sentido do que se diz com cerceamentos ideológicos é
querer instituir a incapacidade de pensar. Se a intenção for mais discutir do
que doutrinar, é melhor procurar entender a expressão dentro do contexto em que
foi usada.
O lamentável de tudo isso é ver que
há pessoas que caem irrefletidamente nessas armadilhas retórico-doutrinárias.
Sob a faceta do politicamente correto certas pessoas se põem a restringir impropriamente
os usos na língua com intenções menos educativas do que doutrinárias e assim
procedem rotulando de forma negativa qualquer pessoa que faça uso de expressões
que, do raso de seus entendimentos, são condenadas como impróprias. Foi triste ver o pobre interlocutor do
professor de história desamparado, sentindo-se (ironicamente) a ovelha negra do
rebanho, achando que cometeu um pecado terrível, pedindo desculpas e lamentando
o seu infortúnio.
Prof. Alan Oliveira Machado