terça-feira, maio 15, 2012

UM QUINTO, DOIS QUINTOS E O MESMO INFERNO



                                      Professor Alan Oliveira Machado

É mais que comum dentro do processo de movimentação das línguas vivas o enunciado em dado momento perder a enunciação. Em decorrência disso, o enunciado sobrevive à medida que em torno dele se forma outra enunciação cujos sentidos possíveis  nem sempre têm a ver com os outrora a ele atribuídos. Os ditos populares constituem um campo fértil  para a observação desse fenômeno. Tomemos como exemplo o dito  “feito nas coxas”. Esse dito, segundo o escritor e etimologista Deonísio da Silva, vem dos tempos do Brasil colônia, época em que as telhas eram modeladas tendo como suporte a coxa dos escravos. Como havia escravos com tamanhos e larguras distintas de coxas, as telhas e os telhados ficavam tortos e irregulares. Mais a frente, com o surgimento das telhas moldadas em fôrmas de tamanho único, as telhas feitas nas coxas e os telhados feitos com elas passaram a ser considerados coisas ruins, sem qualidade. Hoje, a expressão “feito nas coxas” cabe sem problemas em contextos situacionais que a evocam com o sentido de coisa ruim, mal acabada e mal feita.
Pois bem, o que me fez refletir sobre essa questão foi o fato de ter lido, no último número da revista Cotoxó, periódico cultural de Jequié-Ba, um pequeno texto que, a pretexto de falar da tradição brasileira de manter o valor dos impostos sempre nas nuvens, acabava historiando sobre uma expressão ainda muito popular em nosso cotidiano, qual seja: “quintos do inferno”.  Diz o texto que a expressão remonta aos tempos do Brasil colônia quando o governo português taxava as riquezas exploradas nas terras tupiniquins com um imposto que consumia um quinto de tudo que se extraia ou produzia. Segundo o autor do texto, já indignados com a extorsão do império lusitano, os grandes proprietários brasileiros passaram a se referir ao imposto como o “um quinto dos infernos”. A revolta com o tal “um quinto” foi tanta que a certa altura, num episódio conhecido como “Derrama”, fez irromper a Inconfidência Mineira. Ao que parece, o “um quinto” era um inferno na vida daqueles brasileiros, era uma coisa do cão, era o quinto dos infernos.
Mas a curiosidade que conduziu meu interesse à origem da expressão “quinto dos infernos” vai um pouco além: é de viés linguístico, especificamente semântico. O fato é que o “quinto dos infernos” tem cunho matemático, porém o uso em alguns lugares deu-lhe um sentido geográfico. Creio que não é difícil encontrar alguém que  presenciou ao longo dos anos muitas pessoas em meio a desentendimentos mandar o desafeto para o “quinto dos infernos”. Nesses casos, o referido “quinto dos infernos” ganhou status de lugar apropriado para enviar alguém que nos enche a paciência, que nos tire do sério. Geograficamente falando, “o quinto dos infernos” deve ser algum lugar, mais inóspito do que conseguimos imaginar, situado no inferno.
Ao comparar os dois usos da expressão, nota-se que a operação diacrônica de mudança de sentido fez uso da metáfora. Percebe-se aí um deslocamento do campo de referência do conjunto significante, como depreendemos do sentido tradicional de metáfora.  A metáfora é um fenômeno semântico corrente no uso diário da língua, quando estão em funcionamento os seus (da língua) inseparáveis mecanismos de produtividade e de economia. O referido fenômeno caracteriza-se como uma transposição, ou melhor, ocorre quando uma palavra ou expressão é transposta para um campo semântico que não é  propriamente o do objeto que ela designa. No caso em questão, “quinto”, que inicialmente apontava para um número fracionário condenado socialmente,  passou a ser um lugar, o pior dos lugares e ao ser usado de tal forma tendeu a uma duplicidade metafórica. Isso quer dizer que primeiro “quinto” é fração, mas está figuradamente desempenhando função de lugar e “infernos”, que metaforicamente funcionava como qualificativo negativo de “quinto” fração, passou metaforicamente a substantivo, denominativo geográfico do lugar “quinto”. Constituída a transposição obtém-se  o todo figurado em “vá pro quinto dos infernos” que está no lugar de “desejo-lhe o pior”. Sendo assim, a fração negativa “quinto dos infernos” passou a significar um lugar ruim e o lugar ruim a significar um desejo negativo.
Resta dizer que é enriquecedor observar esses movimentos singulares operados pela língua. Eles são provocadores de mudanças de sentido, no tecido significante, que vão saltando de lugar a lugar e de época a época, reaproveitando enunciados como um combustível que  faz girar a incansável roda da produção de sentidos com a qual os súditos da língua, os usuários, têm de lutar no dia a dia. Essa luta, como diria o poeta Carlos Drummond, é uma luta com palavras, uma luta para expressar; é luta vã, uma vez que a roda gira continuamente. Por falar nisso, retomando o assunto dos impostos extorsivos, se os habitantes do Brasil colônia achavam o imposto de um quinto uma violência, o que dizer dos impostos de hoje que correspondem a dois quintos? Seria o caso de mandar os governantes para o quinto dos infernos?