Professor Alan Oliveira Machado
É mais que comum dentro do processo de movimentação das línguas vivas o
enunciado em dado momento perder a enunciação. Em decorrência disso, o enunciado
sobrevive à medida que em torno dele se forma outra enunciação cujos sentidos
possíveis nem sempre têm a ver com os
outrora a ele atribuídos. Os ditos populares constituem um campo fértil para a observação desse fenômeno. Tomemos como
exemplo o dito “feito nas coxas”. Esse
dito, segundo o escritor e etimologista Deonísio da Silva, vem dos tempos do
Brasil colônia, época em que as telhas eram modeladas tendo como suporte a coxa
dos escravos. Como havia escravos com tamanhos e larguras distintas de coxas, as
telhas e os telhados ficavam tortos e irregulares. Mais a frente, com o
surgimento das telhas moldadas em fôrmas de tamanho único, as telhas feitas nas
coxas e os telhados feitos com elas passaram a ser considerados coisas ruins,
sem qualidade. Hoje, a expressão “feito nas coxas” cabe sem problemas em
contextos situacionais que a evocam com o sentido de coisa ruim, mal acabada e
mal feita.
Pois bem, o que me fez refletir sobre essa questão foi o fato de ter
lido, no último número da revista Cotoxó,
periódico cultural de Jequié-Ba, um pequeno texto que, a pretexto de falar da
tradição brasileira de manter o valor dos impostos sempre nas nuvens, acabava
historiando sobre uma expressão ainda muito popular em nosso cotidiano, qual
seja: “quintos do inferno”. Diz o texto
que a expressão remonta aos tempos do Brasil colônia quando o governo português
taxava as riquezas exploradas nas terras tupiniquins com um imposto que
consumia um quinto de tudo que se extraia ou produzia. Segundo o autor do
texto, já indignados com a extorsão do império lusitano, os grandes
proprietários brasileiros passaram a se referir ao imposto como o “um quinto
dos infernos”. A revolta com o tal “um quinto” foi tanta que a certa altura,
num episódio conhecido como “Derrama”, fez irromper a Inconfidência Mineira. Ao
que parece, o “um quinto” era um inferno na vida daqueles brasileiros, era uma
coisa do cão, era o quinto dos infernos.
Mas a curiosidade que conduziu meu interesse à origem da expressão
“quinto dos infernos” vai um pouco além: é de viés linguístico, especificamente
semântico. O fato é que o “quinto dos infernos” tem cunho matemático, porém o
uso em alguns lugares deu-lhe um sentido geográfico. Creio que não é difícil encontrar
alguém que presenciou ao longo dos anos
muitas pessoas em meio a desentendimentos mandar o desafeto para o “quinto dos
infernos”. Nesses casos, o referido “quinto dos infernos” ganhou status de lugar apropriado para enviar
alguém que nos enche a paciência, que nos tire do sério. Geograficamente falando,
“o quinto dos infernos” deve ser algum lugar, mais inóspito do que conseguimos
imaginar, situado no inferno.
Ao comparar os dois usos da expressão, nota-se que a operação diacrônica de
mudança de sentido fez uso da metáfora. Percebe-se aí um deslocamento do campo
de referência do conjunto significante, como depreendemos do sentido
tradicional de metáfora. A metáfora é um
fenômeno semântico corrente no uso diário da língua, quando estão em
funcionamento os seus (da língua) inseparáveis mecanismos de produtividade e de
economia. O referido fenômeno caracteriza-se como uma transposição, ou melhor, ocorre
quando uma palavra ou expressão é transposta para um campo semântico que não
é propriamente o do objeto que ela
designa. No caso em questão, “quinto”, que inicialmente apontava para um número
fracionário condenado socialmente, passou
a ser um lugar, o pior dos lugares e ao ser usado de tal forma tendeu a uma
duplicidade metafórica. Isso quer dizer que primeiro “quinto” é fração, mas
está figuradamente desempenhando função de lugar e “infernos”, que
metaforicamente funcionava como qualificativo negativo de “quinto” fração, passou
metaforicamente a substantivo, denominativo geográfico do lugar “quinto”. Constituída
a transposição obtém-se o todo figurado
em “vá pro quinto dos infernos” que está no lugar de “desejo-lhe o pior”. Sendo
assim, a fração negativa “quinto dos infernos” passou a significar um lugar
ruim e o lugar ruim a significar um desejo negativo.
Resta dizer que é enriquecedor observar esses movimentos singulares
operados pela língua. Eles são provocadores de mudanças de sentido, no tecido
significante, que vão saltando de lugar a lugar e de época a época,
reaproveitando enunciados como um combustível que faz girar a incansável roda da produção de
sentidos com a qual os súditos da língua, os usuários, têm de lutar no dia a
dia. Essa luta, como diria o poeta Carlos Drummond, é uma luta com palavras,
uma luta para expressar; é luta vã, uma vez que a roda gira continuamente. Por
falar nisso, retomando o assunto dos impostos extorsivos, se os habitantes do
Brasil colônia achavam o imposto de um quinto uma violência, o que dizer dos
impostos de hoje que correspondem a dois quintos? Seria o caso de mandar os
governantes para o quinto dos infernos?