segunda-feira, março 28, 2011

RETÓRICA, ETHOS E PATHOS: QUE IMAGEM VOCÊ TEM?


De modo genérico e num sentido positivo, Tereza Halliday (1990, p. 08) define a retórica como “um tipo de comunicação para levar alguém, sem o uso da força, a aceitar uma ideia”. Podemos concluir ainda das afirmações dessa autora que uma democracia se delineia por meio do convívio e do entrelaçamento de várias retóricas, ou seja, das “várias maneiras de descrever, explicar e justificar as coisas, buscando o entendimento entre as pessoas que podem concordar ou não com o que lhes é descrito ou explicado”(idem).
O fato de vivermos em uma democracia nos torna, desse modo, seres retóricos, já que esse regime político privilegia o diálogo e o acordo em detrimento do uso da força bruta e da imposição. Mesmo reconhecendo que nas sociedades democráticas persistem, embora em menor escala, o uso da força e da imposição, essas atitudes amiúde são recebidas com reprovação pela sociedade e condenadas como ações negativas ao bom convívio social.
Ao pensarmos pelo ângulo da retórica, por ser o homem social, qualquer manifestação de alguém ou de quem quer que seja, encontra um público, ou conforme a retórica, um auditório. Estando essa manifestação e esse auditório situados em determinado momento histórico, em dadas circunstâncias, ver-se-á então, seguindo Maingueneau (2005, p.98), a instauração de uma imagem a respeito daquele que se manifestou, ou pela forma como produziu o seu discurso1, pela sua compleição física; ou pelos recursos de que fez uso, tais como os gestos, as entonações vocais, o modo como está vestido, o texto escrito etc. A esse respeito, bem antes de Maingueneau já se posicionam Perelman & Olbrechts-Tyteca (2005, p.23) quando, ao refletirem sobre a construção do orador, afirmam que “O estudo dos auditórios poderia igualmente constituir um capítulo de sociologia, pois, mais do que seu caráter pessoal, as opiniões de um homem dependem de seu meio social, de seu círculo, das pessoas que frequenta e com quem convive”.
A essa delicada relação entre aquele que enuncia (orador/locutor) e aquele para quem se enuncia (auditório/interlocutor) a retórica, desde Aristóteles, atribui respectivamente os nomes de ethos e páthos. Rememorando Aristóteles, Dascal (In: AMOSSY, 2005, p. 57) define ethos como o “caráter apropriado a cada tipo de discurso que o orador deve se preocupar em projetar”; e pathos como o “conjunto de emoções que o orador tenta suscitar em seu auditório”. Segundo vimos com Maingueneau e Perelman & Olbrechts-Titeca o conceito de ethos ganha mais complexidade na medida em que considera disposições sociais como a influência do meio etc.
Seguindo esse raciocínio, podemos concordar que ethos e páthos se constroem mutuamente, ou seja, na medida em que o locutor busca construir uma imagem, ele automaticamente cria um páthos, uma vez que no processo de construção do ethos entram informações prévias imaginárias ou não que o orador/locutor guarda a respeito do seu auditório/interlocutor.
Perelman & Olbrechts-Titeca (2005, p. 22), ao tratarem da construção do auditório como construção do orador dizem que “O auditório presumido é sempre, para quem argumenta, uma construção mais ou menos sistematizada. (...) o importante, para quem se propõe persuadir efetivamente indivíduos concretos, é que a construção não seja inadequada à experiência”. Assim, tendo em vista que, de certa forma, o orador/locutor engendra um auditório/interlocutor e este, por sua vez engendra uma imagem do orador/locutor, podemos dizer que o ethos é produto de um jogo de imagens que, para se firmar enquanto tal, necessita de uma sistematização adequada à experiência. O exímio orador, o escritor persuasivo é, dessa forma, aquele que, atuando com certa perícia no auditório, consegue conduzir as paixões deste a um encontro mais ou menos harmônico com as razões do orador, de modo que os sentidos se unifiquem. Conforme Maingueneau (idem), no que tange ao texto escrito, isso ocorre porque o leitor tende a construir a figura do fiador a quem ele deve o texto, “ a partir de indícios textuais de diversas ordens” a quem ele atribuirá “um caráter e uma corporalidade, cujo grau de precisão varia segundo os textos”.
Alan Oliveira Machado

sexta-feira, março 25, 2011

NO MEIO DO CAMINHO TINHA UMA PEDRA*

Prof. Sérgio Waldeck , Doutor em Linguística, professor na Unb.

Na ilustração abaixo, a Pedra da Roseta.

Se você pensou, por causa do título, que nosso tema de hoje seria sobre a famosa poesia de Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1987), está inteiramente enganado. Como você sabe, essa poesia foi publicada em 1930 em Alguma poesia, e foi incorporada na Obra Completa da editora Aguilar em 1962.
O poema modernista gerou grandes celeumas entre leitores e críticos em razão de diferentes rupturas apresentadas contra os modelos tradicionais, tanto da poesia romântica, quanto da parnasiana. Com o objetivo de preservar as numerosas polêmicas geradas pelo poema,  Drummond publicou, anos depois, um livro sobre a história de sua pedra.
            Nossa pedra de hoje é outra, conhecida como Pedra da Roseta, teve crucial importância histórica, pois permitiu que decifrássemos a escrita egípcia e penetrássemos, assim, naquela cultura milenar. Tudo isso começou em 1798 quando Napoleão Bonaparte invadiu o Egito com o objetivo de atingir seu contumaz inimigo, a Inglaterra. Para a conquista do Egito, além de tropas militares, Bonaparte trouxe consigo arqueólogos e cientistas, pressentindo descobertas na terra dos faraós.
            Não deu outra, pois em 1799 os soldados de Bonaparte, em escavações próximas ao delta do rio Nilo, descobriram um bloco de basalto negro com cerca de 1m de altura e 70 cm de largura. Era a Pedra da Roseta.
A pedra que era um verdadeiro documento político louvava o rei Ptolomeu Epifânio em Menfins, no ano de 196 d.C. Ela apresentava três textos em três línguas diferentes: grega que podia ser lida e compreendida; mais duas indecifráveis: hieroglífica e demótica.
Apesar da descoberta dessa raridade trilíngue, os trabalhos de decifração desenvolveram-se com dificuldades por anos a fio, à semelhança do poema de Drummond em que a pedra nunca era ultrapassada nos versos.
Muitos eruditos trabalharam nessas tentativas de decifração, porém a figura mais significativa foi um jovem francês, Jean François Champollion (1790 – 1832) que dedicou 21 anos de sua breve vida a essa grandiosa pesquisa científica. Talentoso, precoce, ele se interessou pela pedra em 1801, portanto com onze anos de idade e dedicou-se a ela até 1822 quando conseguiu sua decifração.


 Fontes de consulta

ANDRADE, Carlos Drummond de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1962.
STÖRIG, Hans Joachin. Aventuras das Línguas. Uma história dos idiomas do mundo. 3 ed. São Paulo, Melhoramentos, 2006.
WYSE, Lis (org). O atlas das línguas. Lisboa: Estampa, 2001.

 Texto publicado em primeira mão no blog AO REDOR DA LÍNGUA, em 7/12/10

quinta-feira, março 24, 2011

QUEM FALA, CALA...



Vitor Hugo F. Martins  
Professor do Curso de Letras da Universidade do Estado da Bahia – Uneb. Doutor em Literatura, poeta, cronista e contista. Autor de Contos cardiais (Editora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, 2006).


Escrevo por profundamente querer falar. Embora escrever só esteja me dando a grande medida do silêncio. 
(Clarice Lispector, Água viva)

Como sabemos, quem cala, fala. “Quem cala, consente”, diz a voz popular, e com alguma razão. É certo, porém, que, para o Direito, calar, por si só, não basta, não incrimina nem descrimina ninguém. Por isso mesmo existem mecanismos jurídicos – por que não dizer o nome certo, chicanas? – que protegem o depoente, fazem-no calar, sem ir de encontro à lei. Ora, com isso, inferimos que esse depoente disse menos do que sabia.

Por outro lado, o que poucos sabem é que quem fala, cala. Como pode ser isso? Simples: quem fala, pensa estar falando originalmente, livremente, por si mesmo, sem censuras. Ledo engano. Por quê? Porque está falando em nome do Outro, sem o saber. Assim, falando o que querem que falemos, acabamos calando o que verdadeiramente queríamos falar. Ainda que pensemos ter consciência do que falamos, no fundo, estamos silenciando-nos. É que o inconsciente nos trai. Quando, por exemplo, uma pessoa se diz anti-racista e despreconceituosa e fala “Fulana é negra, mas linda”, “Beltrano é gay, mas inteligentíssimo”, deixa-se trair pelo discurso do inconsciente, que se materializa pela vírgula e pela conjunção adversativa. Assim como nos fazem trair-nos a nos mesmos as instituições a que nos sujeitamos. Desse modo, a História oficial fala daquilo que a classe dominante quer que ouçamos: “Wladimir Herzog suicidou-se na prisão”. Dessa maneira, cala a verdade, a tortura e a morte do jornalista.

No nosso discurso do dia-a-dia, a fala que cala pode ser reconhecida sem muita dificuldade. Basta que atentemos para o que há de interdito no que falamos e ouvimos. Interdito que pode ser lido como o que está dito nas entrelinhas, porque não podemos/devemos/sabemos/queremos dizer.
O resto é silêncio...


quarta-feira, março 23, 2011

A TERCEIRA CEGUEIRA


REFLEXOES SOBRE A RELAÇÃO LETRAMENTO E CULTURA ORAL

Cosme Batista dos Santos ( Doutor em Lingüística Aplicada, Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Pesquisador do Grupo Letramento do Professor –IEL/Unicamp.)

Este texto que dou o titulo de a terceira cegueira[2] é parte de uma seqüência de textos curtos que venho produzindo sobre determinados conceitos e orientações teóricas de pesquisa sobre o letramento e que, por diversas influências, têm sido utilizados na construção da paisagem conceitual de trabalhos sobre o letramento ou de estudos das praticas sociais mediadas escrita. Como já foi dito, este texto, particularmente, discute uma primeira cegueira que caracteriza a cultua escrita na sua relação com as outras modalidades culturalmente situadas de significação. Acrescenta uma segunda cegueira que, historicamente e geograficamente, impede o trânsito entre a cultura oral e a cultura letrada, assim como entre os seus sujeitos e praticas. Trata ainda de uma terceira cegueira que, nos nossos dias, parece surgir como produto de certas leituras situadas na fronteira ou na interface entre tais culturas.

A primeira cegueira é atribuída, basicamente, à ciência moderna e à cultura escrita, essa última, por ser o canal por excelência dos bens culturais e científicos dos segmentos dominantes da sociedade. A cultura letrada não viu, nem produziu os instrumentos que permitissem o acesso ao conhecimento prático, à cultura oral, às maneiras de fazer e de dizer dos subalternos, dos camponeses e dos operários. Não há na cultura escrita dominante, o espelhamento das ações periféricas dos homens simples, da sua cognição, das suas manifestações culturais e sociais, das suas lutas e dos seus testemunhos históricos.

A segunda cegueira é atribuída, basicamente, ao senso comum e à cultura oral, essa última, por ser o canal diverso de produção de sentido e de circulação dos saberes culturalmente e tradicionalmente produzidos nas/pelas diferentes tribos e comunidades do mundo. A cultura oral ou, em outros termos, os grupos que não possuem o poder da leitura e da escrita, são historicamente excluídos do acesso aos sentidos, saberes e ações que a cultura letrada permite acessar, por exemplo, como o faz as minorias dominantes que possuem a letra. A falta do acesso aos bens simbólicos da cultura letrada de elite não permite com que os subalternos, os ditos pouco letrados, acessem o trabalho em condições mais especializadas e os conhecimentos e códigos letrados úteis á sua sobrevivência, como por exemplo, a capacidade de transitar em outras culturas e novas realidades históricas, geográficas e lingüísticas, por exemplo. A segunda cegueira, nesse sentido, se configura pela ausência de uma “luz” para o exterior da cultura oral e que através dela os ditos poucos letrados possam migrar dos seus lugares para outros ainda então desconhecidos; e que através dela possam “iluminar”, evidentemente, não em termos absolutos, o mapa do conhecimento, do lugar e da história alheios, dos bens produzidos por tantas gerações, em tantos lugares distintos e distantes.

A terceira cegueira é atribuída aqui à tentativa de dar sentido ao dito fim da fronteira entre a cultura letrada e a cultura oral, sinalizando o desmonte das dicotomias e das polarizações entre o letramento e a oralidade, por exemplo, muitas vezes sob a proteção de um revestimento meramente estético. Essa operação de desmonte dos pilares sólidos dessas culturas em muito pode estar contribuindo para o surgimento disso que estamos chamando de uma terceira cegueira e que parece ganhar espaço em novos quadros ou paisagens conceituais que estão se formulando na base de explicação de novos trabalhos sobre o letramento situado. Esse componente teórico, a nosso ver, se não resulta de um rigor analítico tão necessário à investigação em linguagem, poderá também se encerrar no mero revestimento estético categorizado pelo pressuposto. Em outros termos, poderá obscurecer ou negligenciar, por exemplo, as interferências mútuas entre as culturas que certamente nem sempre apresentam a mesma configuração, grau de circularidade e traços que se (des) estabilizam entre elas.
A rigor, a mistura cultural e lingüística não lembra, pelo menos em termos absolutos, a diluição de líquidos em um mesmo recipiente, conforme parece sugerir algumas análises mais empolgadas do hibridismo na relação cultura oral e a cultura escrita. Esse tipo de análise especulativa não resolve o problema das duas cegueiras já descritas, não empodera nada, nem ninguém, apenas poderá institucionalizar uma nova, uma terceira cegueira.

[2] Texto inspirado nos debates ocorridos no IV Seminário do Grupo Letramento do Professor ocorrido em agosto de 2007, no Instituto de Estudos da Linguagem – IEL/Unicamp. É também inspirado na obra de Boaventura de Sousa Santos sobre a sua “Crítica da razão indolente” (Santos, 2002). Devo adiantar também que são reflexões que compartilho com muitos outros, mas que pretendo levar adiante e até ampliar, sem a necessidade de citações explicitas.

LEITURA VIRTUAL: O QUE É ISSO?


Luciano Rodrigues Lima (Doutor em Literatura, Professor titular da UNEB, Professor adjunto da UFBa)


Chama-se leitura virtual a leitura do texto na tela do computador (PC, lap top ou palm top), ou do texto projetado por um data show, projetor de cinema, tela de televisão ou mesmo um simples retro-projetor. O significado da palavra virtual é controverso (Gilles Deleuze, um pensador francês, alerta que o virtual não é o irreal, mas algo como o devir do real, uma espécie de futuridade do real), mas podemos falar de algumas de suas características: é algo que se revela como uma imagem do real, mas não possui uma corporeidade permanente; projeta-se como imagem e som perceptíveis, mas é resultado de um processo de codificação eletrônica e não do movimento de corpos reais (a música gravada é virtual, a voz ao celular, também, assim como o próprio texto impresso possui algumas características virtuais, pois representa as palavras que não estão sendo pronunciadas por nenhum aparelho fonador de verdade).


A imagem virtual necessita de um componente cultural para a sua percepção e compreensão. Muitos animais não reagem à comunicação virtual pois não são capazes de compreender a cultura e o significado das invenções humanas (embora possuam sua própria cultura), enquanto outros, como os macacos e, às vezes, gatos, percebem e reagem diante das imagens virtuais, numa surpreendente capacidade de adaptação cultural.


Voltemos, contudo, ao texto verbal virtual. A internet, o texto online, é, sem dúvida, o maior acervo de textos verbais para leitura virtual, cabendo citar, também, as edições eletrônicas de obras e textos de qualquer natureza, em CD-ROM, pen-drive, MP3, MP4, etc. A leitura desses textos se dá sempre em tela, mas essa concepção de leitura é avançada e o texto verbal pode ser associado a outros recursos midiáticos, como som, imagem em movimento, efeitos especiais de diversos tipos.


Se me perguntam se o texto virtual substituirá o livro, no futuro, respondo que não sei. O futuro da tecnologia virtual é imprevisível. Mas penso que o texto virtual possui vantagens em relação ao texto impresso. O texto virtual é mais ecológico pois não necessita de papel, material atualmente feito de celulose vegetal. Também não ocupa quase nenhum espaço, algo tão importante nas reduzidas moradias das cidades grandes. Mas a maior vantagem do texto virtual é a sua praticidade, explicada através de aspectos como a atualidade, a velocidade e a acessibilidade. O texto virtual é sempre atualizável, como os dicionários, glossários e edições de obras online. As edições eletrônicas de jornais e revistas são atualíssimas. Mesmo os textos pessoais são mais rápidos, bastando comparar a carta tradicional e o e-mail. O acesso ao conteúdo dos textos virtuais (corpora para pesquisas, edições eletrônicas de obras completas, referências bibliográficas e referências terminológicas) é sempre mais rápido. Se estou lendo, por exemplo, a obra completa de Freud em edição eletrônica e desejo pesquisar o tema “inconsciente”, a edição me dará a indicação de todas as páginas, livros e artigos em que o termo aparece. Além disso, o texto em tela é digitalizado e pode ser copiado, reformatado, enviado para qualquer outro computador em qualquer parte, transposto para outros meios eletrônicos e, caso o usuário ainda possua apego às coisas matérias em si, como aqueles leitores fetichistas que adoram cheirar os livros, o texto virtual pode ser impresso.


Penso que o Brasil, principalmente o MEC, os órgãos que lidam com cultura e ciência, as universidades, as editoras e mesmo aqueles que comercializam qualquer tipo de texto escrito, ainda precisam discutir uma política para disseminação do texto virtual. Sabe-se que existe, atualmente, mais leitura virtual do que leitura de texto impresso e mais lan-houses do que bibliotecas, mais e-mails do que cartas. E penso, ainda que existe mais escrita virtual do que escrita em papel. A escrita virtual é atraente, pois é assistida por revisores ortográficos, não existe partição silábicas, alerta-se contra repetição de palavras, pode-se corrigir infinitamente e já existem revisores gramaticais que auxiliam e alertam quanto às concordâncias verbal e nominal. Sem contar que se pode pegar qualquer informação online sobre nomes próprios, fatos históricos, obras, etc, para se utilizar na própria escrita.


De volta à questão das políticas públicas, parece existir, ainda, principalmente nas universidades, um forte preconceito contra o texto virtual, principalmente o texto através da internet. Para muitos países, como o Reino Unido, a Austrália, os Estados Unidos e o Canadá, a internet já é o espaço em que toda a cultura acumulada (todos os textos clássicos de todas as áreas do conhecimento) está disponível gratuitamente em língua inglesa. É como se fosse a grande biblioteca de Babel, como a concebeu o escritor argentino Jorge Luis Borges. Enquanto esses países disponibilizam seus textos em suas línguas, o que angaria prestígio para suas respectivas línguas e culturas, no Brasil ninguém disponibiliza nada. Faltam iniciativas e sobra desconfiança.
Se se quiser cobrar pelos textos, existem mecanismos como as livrarias virtuais, a exemplo do Questia, um portal onde se paga via cartão de crédito e se tem acesso a milhares de livros novos. Ou, buscam-se patrocinadores para os sites de leitura virtual. A pirataria eletrônica pode quebrar essa resistência ao texto virtual e tornar digital e gratuito o texto daqueles autores mais resistentes ao meio virtual. Assim, não querendo perder um pouco eles acabarão perdendo tudo. O texto virtual, no meu entendimento, democratiza a leitura.


Imprevisível, o futuro do texto virtual e do texto escrito (discussão já antecipada em Apocalípticos e integrados, de Umberto Eco, mas também preocupação de pensadores baianos como Antônio Risério, em Ensaio Sobre o Texto Poético em Contexto Digital) interessa a todos os leitores. Encerro este breve texto (virtual) com uma frase do pensador Jean-François Lyotard, para reflexão: “...no futuro, tudo que não couber em tela de computador será descartado”.

terça-feira, março 22, 2011

O FANTÁSTICO PAÍS DAS MARAVILHAS


Lewis Carroll criou o País da Maravilhas por onde fez andar a menininha do mundo cartesiano, cheio de ordem simbólica, Alice. É lendo um livro que ela aparece nas primeiras páginas de Carroll, antes de ser lançada à desordem do País das Maravilhas. Alice é do mundo livresco, da cultura, da ordem estabelecida por acordo prévio, do mundo da linguagem, melhor, do torpor de verossimilhança que a língua cria ao nosso redor e em nosso interior.
A sensação de segurança e de convicção que o mundo de Alice (mundo nosso também) oferece por meio de uma operação de esquecimento do acordo prévio, da montagem lógica que apaga o caos e instaura uma realidade de linearidade plena são destroçados à medida que Alice mergulha no subterrâneo País das Maravilhas. Em Alice in wonderland, Lewis Carroll arrebenta a representação, a linearidade lógica do  nosso mundo. Carroll enfrenta Charles Dogson e quem foi Dogson? Um doutor em lógica, um professor de matemática da prestigiada universidade de Oxford. Charles Dogson é Alice e Alice é quem? A pronúncia em inglês do seu nome dá a pista: /éli ci/  sonoridade homófona da combinação do som de duas letras em inglês  "L" e "C" = /éli/ e /ci/ . Quem não diria que "L" e "C" são também as iniciais de Lewis Carroll?
O fato primo mobilis que desencadeia toda a ação na história de Alice no País das Maravilhas acontece quando um coelho branco passa correndo  pela menina Alice e falando que está atrasado, de olho em um relógio que retirou do bolso do colete. Eis aí a grande invenção, o pai de todas outras ilusões humanas: o Tempo! O relógio estabelece o Tempo como uma realidade, mesmo não existindo Tempo, mesmo o Tempo sendo a maior de todas as invenções, o maior de todos os contratos humanos. A crença na existência do tempo encobre a desordem, o caos  e propicia a pavimentação de um caminho linear para a existência. O tempo foi instituído como um alicerce sobre o qual edificamos o nosso mundo de ordem. O coelho de Lewis Carroll está atrasado, está fora do tempo, fora da ordem e será ele quem conduzirá Alice para o mundo sem Tempo do País das Maravilhas. Não tendo o Tempo como suporte, necessariamente a realidade desse mundo subterrâneo não será compatível com a nossa. 
A gente sabe que o País das Maravilhas não representa a realidade fora da ordem da linguagem, representa a linguagem fora ordem da representação estabelecida. É a violação da base de sentido dos significantes que torna estranho o mundo no qual Alice se enfiou. É a linguagem que é questionada  e como somos seres visceralmente de linguagem, ficamos encabulados com o Chapeleiro Maluco, aquele que diz: ver o que se come não é o mesmo que comer o que se vê ; com Humpt Dumpt, com a Rainha de Copas e tudo mais que corrói o cimento que solda os sentidos nas palavras de tal forma que esquecemos ser tudo uma mera invenção, uma maravilhosa farsa. Há braços! alan

terça-feira, março 08, 2011

UMA PROVOCAÇÃO... ACEITA?

    "Nietzsche, ao contrário da tradição, que acreditava na razão como aquilo que é próprio do humano, como aquilo que lhe é natural, chama razão a este sistema moral de interpretação do mundo. A razão é a órbita capaz de fazer o pensamento girar em torno da mesma ideia: a identidade, a causalidade, a não contradição do ser. É a linguagem quem 'advoga' a favor do erro metafísico do ser; raciocinar é submeter o pensamento a este sistema.
   A crença no ser, que marca o nascimento da razão ocidental, é a configuração da ideia de verdade. É em torno da noção de ser que circula a filosofia metafísica. A despeito de toda tentativa de crítica, a filosofia nada mais fez do que reproduzir, incessantemente, uma lógica da identidade, como vontade de duração, como vontade de verdade".
  (MOSÉ, Viviane. Nietzsche e a grande política da linguagem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.)  HÁ BRAÇOS!

domingo, março 06, 2011

PÉRIPLO LITERÁRIO LATINO-AMERICANO

     A America Latina é imensa em todos os sentidos. Indefinível ainda é o tamanho do seu potencial criativo e imaginário. Na vastidão da pluralidade de culturas, línguas e abordagens do cotidiano vicejam poetas e escritores de quilates variados e de riqueza criativa incontestável.
   No fervilhar do caldeirão cultural latino-americano queremos não apenas apresentar como destacar a produção poética de Miguel Alvarado, escritor costarriquenho, acadêmico e professor da Escola de Ciências e Letras da Universidade da Costa Rica. Além de pesquisador produtivo Miguel Alvarado é poeta premiado em vários concursos internacionais. Destaco, entre os prêmios obtidos por esse ativista da Educação e da Literatura, o Premio Joven Creación, arrematado com a sua obra Insurrección de las cosas. Parte da obra de Miguel Alvarado tem sido publicada em países como Espanha, Bielorrusia e Estados Unidos.
Abaixo confiram o poema Cuando me di cuenta quién es usted, extraido do livro Tentación maniquí, publicado pela Uruk Editores em 2010:

Cuando me di cuenta quién es usted

cuando me di cuenta quién es usted
y de lo que es capaz,
pensé en gritarle
cerdo!, sapo!, cucaracha!,
pero mordiéndome la lengua
me contuve.

más tarde, después de haber visto
una lagartija refugiarse rápidamente
(al huir de mi presencia),
me percaté de la injusticia a punto de cometer:
ni el mamífero, ni el vertebrado, ni el insecto,
se merecen el impropério
de ser comparado con usted.

     O livro do qual recolhemos este poema segue de certo modo a pluralidade do fazer poético do autor que vai espalhando, pelos capítulos da obra,  poesia urbana, sensual-romântica, política, alimentando um  trânsito sobre mitos sociais. A poesia acima, desencadeia-se como uma   catarse que afeta quem se vê sob o jugo de tiranos ou sufocado pela presença autoritária que bloqueia o fluir da vida. Há braços!  

MONTEIRO LOBATO E A PATRULHA BOCÓ


  Recentemente houve uma polêmica envolvendo o MEC e o Conselho Nacional de Educação com respeito ao conteúdo racista de algumas passagens do livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato. Um ativista do movimento negro encaminhou denúncia a instâncias do governo pedindo a retirada do livro da lista de obras do MEC e cobrando seu banimento das salas de aula.Imediatamente, comandos ideológicos do movimento negro iniciaram uma patrulha para excomungar a obra de Monteiro Lobato. E o que se viu foi gente que nunca leu uma página da literatura lobatiana alimentando certo apedrejamento simbólico insano do escritor.
    Monteiro Lobato é, sem dúvidas, o maior escritor de literatura infantil das américas. Talvez o único que desde os anos 20 do século XX se comprometeu em produzir uma obra exclusivamente para as crianças, mas sem a visão distorcida da infância reinante na literatura voltada ao universo infantil daquela época. A obra de Lobato, nesse quesito, é plural, criativa e educativa. Tanto é que faz sucesso em muitos países. Em alguns, como a Argentina, é mais lida e reverenciada do que no Brasil. Mas inevitavelmente, em certos aspectos, a criação infantil desse escritor é produto de uma época. Isso não diminui sua inventividade e nem o seu valor, porém nos força a ser criticamente  mais cuidadosos com certos aspectos ao empreender sua leitura. E não é assim mesmo que se deve proceder com qualquer leitura?
    No livro Caçadas de Pedrinho, algumas expressões com negativa tintura racial utilizadas por Lobato, ao se referir à personagem Tia Nastácia, soariam com naturalidade nos anos de 1930, quando o livro em questão foi escrito. Entretanto, para os padrões culturais contemporâneos tais expressões são grosseiras e visivelmente desrespeitosas com o negro.  Mas isso não justifica o banimento do livro. Não se pode ignorar as muitas virtudes da obra infantil desse escritor paulista em função de um aspecto negativo. 

    A educação que prepara o ser humano crítico não exclui as falhas humanas do espaço de formação da criança, pelo contrário, as traz para a arena da sala de aula e as transforma em conteúdo educativo. Se não fosse assim, a obra do filósofo grego Aristóteles que reproduz uma visão terrível da mulher para os padrões de hoje, aspecto do seu pensamento perfeitamente comum no contexto grego de sua época,  lhe tiraria a posição de maior pensador do mundo ocidental de todos os tempos e isso ninguém com neurônios funcionando cogitaria imaginar. 
    As patrulhas ideológicas são vozes críticas e contrárias em plena ação. Se fosse só essa sua natureza seria uma maravilha, contudo patrulhas não raro boiam na superficialidade, são indissociáveis de comportamentos autoritários e invariavelmente adeptas da monocultura do saber, no caso o seu próprio. Assim, tendem a querer eliminar o conteúdo que contraria o seu posicionamento em vez de transformá-lo em objeto de formação crítica. O MEC e o CNE não cederam a esse lado bocó das patrulhas. Optaram acertadamente por manter o livro Caçadas de Pedrinho na lista das escolas orientando os professores a debaterem seu ponto negativo e assegurando aos alunos o convívio com suas muitas virtudes. O que você pensa sobre isso, leitor? Há braços! Alan Machado, 11-11-2010.



sábado, março 05, 2011

ENTÃO EU OLHO PARA TRÁS



Então eu olho para trás
e o passado é um rastro de tinta
irregular, sem cheiro,
coberto pelo lodo do tempo.
Minha memória é úmida
e avessa à contaminação.
O que resta estendido sobre a estrada
por trás dos meus ombros
não tem retoques,
está como foi pisado,
amalgamado pela existência.
Na minha pele jazem os respingos
dessas tintas.
Quem poderá identificá-las?
Deixo o que está por trás dos meus ombros ao sabor do tempo
embora saiba que tudo está em minha carne.
É com esse bisturi que abro o horizonte em minha frente;
é com esse pincel cortante que vou pintando a paisagem
frontal;
que vou picotando o futuro;
que vou abrindo veredas como feridas frescas
a verterem vida quente.
(há braços!)