quinta-feira, maio 22, 2008

SILENCIAR AS PALAVRAS



Para Anairam Gamper

Acendeu um cigarro, deu uma longa tragada e abaixou a cabeça concentrando-se sobre alguns escritos. Ergueu de súbito o olhar, parecia um pouco ansiosa. Pousou os grandes olhos verdes sobre mim. Gostei da atitude. Gosto daquele jeito que ela me olha, mas queria mesmo era uma atenção mais viva. Desejei um abraço quente e um beijo terno. Pensava isso, foi o que imaginei no instante em que aqueles olhos me pegaram. Ela continuou lá na mesa com o semblante pensativo e eu recostado em uma rede, com um livro aberto nas mãos enganando a consciência, enquanto o coração palpitava de desejo. A minha musa, a minha deusa de alabastro instalada diante dos meus olhos, que fingiam apreender alguma racionalidade impressa no papel. Era tarde para a razão... Mirei o róseo dos lábios, lembrei-me do colibri tatuado no cálice de Vênus... Por que as coisas são assim? O que eu sinto não cabe em palavras e sempre insisto em usar esse aparelho de imprecisão grosseira... A fala, a escrita.

Minto muito em torno do que eu quero. Desacerto sem perceber. Com ela a minha linguagem é um muro que me separa do que eu mais desejo, do que eu mais preciso. Creio que os nossos corpos se entenderiam melhor se ficássemos de boca fechada. Talvez seja por isso que neste momento de silêncio aqui na rede a vontade de abraçá-la, de beijá-la e de sentir seu hálito me assaltou tão poderosamente. Sinto que necessitamos inverter o jogo maldito que empalideceu o nosso amor. Chegou o momento em que alcançamos o limite do possível, se prosseguirmos assim tudo pode se pulverizar dolorosamente. Inverter o jogo é desaprisionar o corpo, aceitar o afeto, o calor... Retribuí-los... Dar toda liberdade possível ao contato físico e amordaçar a razão, a linguagem, esse veneno cruel que congela os desejos, que distancia a pele, o toque, o olhar carinhoso.

As coisas deveriam seguir assim: quando pensarmos em dizer qualquer coisa, devemos fazer sair de nossas bocas apenas o hálito do desejo, os sons mais comunicáveis às vísceras do que à razão... Antes de mais nada, deveríamos querer o outro sem nenhuma comunicação verbal... Ah, minha amada, como eu sei que isso é possível...

Deu uma última tragada, abandonou o cigarro no cinzeiro. Demorou os olhos em mim. O que pediam aquelas esmeraldas? Desejavam o silêncio da boca e o tumulto da carne? Na página esquerda do livro encontro um conforto: Esta vontade é amor no sentido de que amar é querer aquilo que é (tal qual e não de outra maneira) seja uma infinidade de vezes aquilo que é. Leio e releio o fragmento, ignoro o resto do texto. Para mim só existem aquelas palavras. Amar é querer do jeito que é... Elas fervem no caldeirão dos meus sentimentos. Nem percebo a friagem da noite. Deixo-me levar por essa estranha turbulência que me aquece. Olho para a mesa. Um cigarro apagado no cinzeiro. O resto é silêncio. (alan, em 2000)

quarta-feira, maio 21, 2008

ELOGIO À SUPERFÍCIE




Os mistérios do fundo flutuam diante dos mergulhadores. Mas, assim como nós, simples mortais, os mergulhadores precisam da superfície para poder respirar. Há braços! alan

quarta-feira, maio 14, 2008

LÍNGUA E PODER


Segundo Maurizzio Gnerre*, o poder desde muito tempo esteve ligado à língua, ou a língua ao poder. Quando os povos começaram a se organizar em nações e estados, houve a necessidade de homogeneização do entendimento, como estratégia de manutenção do poder. Por esse viés, cabe a compreensão de que se havia a necessidade de manutenção do poder, havia obviamente alguém no poder, que dele se beneficiava a ponto de querer preservá-lo.

Dentro dos castelos, conforme Gnerre, os reis e mandatários decidiam o que devia ser dito e o que poderia ser veiculado como crença. Decidiam, sobretudo, se certas palavras poderiam ou não ser usadas. Em primeira e última instância, a palavra do rei era a palavra real, verdadeira e incontestável. Resquício disso, o apego que cultivamos ainda hoje ao uso da variação padrão da língua como a única correta, a culta, reflete uma percepção pouco crítica da relação entre língua e poder. Afinal, quem determinou a variação padrão como a correta?

Se, a título de exemplo, nos reportarmos aos gregos, produtores das primeiras gramáticas, veremos que os usos do idioma grego formalizados em suas gramáticas correspondiam tão-somente aos modos de expressar e escrever de uma pequena elite de legisladores, administradores e grandes proprietários da época. Disso podemos concluir que há uma tendência política clara de quem ocupa o poder em impor seu uso lingüístico como a norma correta a ser seguida. A esse respeito não podemos nos esquecer dos Index probi, das listas latinas do que se devia ou não falar e escrever.

O resultado da imposição de uma variação como a correta, a melhor, representou desde sempre a exclusão social e a depreciação da diversidade lingüística e cultural de amplos segmentos da sociedade. Efeito disso, a extinção de línguas e culturas não ocorreu no mundo de forma natural. Ela se deu de forma agressiva e violenta, mediante a eliminação dos membros de tais culturas ou por meio do forçoso silenciamento de suas línguas, tendo como princípio a imposição da língua e da cultura do dominador. A eliminação da língua do dominado em favor da língua do dominador facilitou o controle e a exploração daquele, uma vez que o obrigou a pensar pelos moldes de quem o dominava.

Depois dessa rápida divagação, não seria bom a gente pensar no papel que estamos representando quando nos pomos a diminuir os outros em função do modo como falam ou escrevem? Há braços! ( alan, em 2007)
*GNERRE, Maurizzio. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

PERSEU E A MEDUSA OU NÓS E A REALIDADE?

Vamos usar como base para essa reflexão um mito grego. Sim, porque os mitos nos têm muito a ensinar na medida em que constituem uma condensação simbólica da consciência, da inconsciência e da experiência humana ao longo dos tempos. Então pensemos no mito de Perseu e Medusa. A Medusa era um monstro tenebroso com cabelos de serpentes. O olhar dessa criatura petrificava literalmente todo e qualquer opositor de tal forma que quem a enfrentava acabava reduzido a pedra. E se determinarmos que essa figura da medusa, também conhecida como Górgona, é uma representação simbólica da realidade, o que poderemos dizer? Poderemos dizer que a realidade é monstruosa, que ela nos amedronta, nos petrifica, nos desumaniza, nos angustia e nos reduz à insignificância. Então, nossa vida é essa luta para sobreviver à estagnação pétrea, à desumanização imposta pela realidade meduzina. E ao ver o tanto de pessoas que a realidade desumaniza, petrifica, reduz a pó, de imediato, nos enchemos de desânimo e tristeza. É como se não existissem saídas.

Mas esse é um lado do mito da Górgona. No correr da narrativa mítica, nos damos conta de que Perseu venceu a Górgona, decapitou-a e isso significa muito na medida em que nos mostra uma saída. Perseu evitou o olhar da Medusa, evitou também olhá-la. Traduzindo, Perseu evitou a crueza da realidade, para poder sobreviver a ela e evitar essa crueza, sua dureza, não significou ignorá-la. O que fez o herói mítico foi mudar a forma de olhar, mudar o ângulo sob o qual estava acostumado a ver a realidade. O ângulo que o paralisava, que o insensibilizava, que ameaçava a sua existência humana, tornando-o frio como uma pedra. Perseu notou que poderia encarar o monstro mirando-o pelo reflexo do seu bem polido escudo. Assim, acompanhou os movimentos da Górgona até o momento em que pôde desferir-lhe um golpe seguro e certeiro, vencendo o terrível animal.
Uma das lições que o mito nos dá então é a de que precisamos mudar o modo de ver e encarar as coisas de vez em quando, para nos livrarmos da paralisia terrível que o posicionamento monolítico nos provoca. Mudar a maneira de ver um amigo, um irmão, um inimigo, um filho, a família é, em princípio, evitar os conceitos pré-elaborados, é não se satisfazer com a imagem imediata, é deixar que o outro apareça diante dos nossos olhos de forma diferente, como uma novidade inquietante; é não se deixar apanhar pelo que brutaliza o olhar, pelo que o desumaniza.
O que fizemos e o que temos feito, principalmente no campo político, é isso. E não é fácil fazê-lo. Afrontar a realidade fora do campo de acomodação que a faz funcionar, fora do campo de condicionamento que ela cria para a gente se submeter é quase sempre muito violento. Precisamos matar uma medusa por mês pelo menos para não virarmos estátuas de pedra, ou melhor, bonecos nas mãos dos outros. E matar esse bicho, ou seja, desmistificar uma prática, desmistificar um pensamento, um modo de encarar a vida, gera rancor, irritação e reações emocionais as mais diversas, nas pessoas que estão arraigadas a essas coisas, com destinos petrificados. Numa situação dessas, como tocar o coração, o orgulho e o caráter de pessoas petrificadas a não ser com marteladas, com marretadas? No que concerne a nossas críticas políticas em Uibaí, por exemplo, temos a impressão que já rendeu o que devia render. Elas fizeram muita gente ir estudar, outras se preocuparem com o que fazem e o que dizem, fez outras irem ler e escrever e, no momento, nos damos por satisfeito com isso. Não nos incomodamos com o peso do mal-estar emocional dos outros que sobra para nós, isso faz parte do processo. Quando nos propusemos a questionar a nossa realidade de esquerda já contávamos com essas reações. Soubemos nos blindar (parte boa da informação psicanalítica) e o fizemos como deveria ser feito, nos momentos adequados.

Como dissemos, essa fase rendeu o que podia. Agora o foco é outro: a união, a organização, a base... O Boca do Inferno 35 já sinaliza essa nova direção. A nossa preocupação é organizar o que está ausente dessa linha que foi bombardeada. É dar visibilidade ao que a nossa prática (de todos os uibaienses) deixa ausente, ignora. Vamos, a partir de então, fazer emergir o mais simples, agora, com uma boa bagagem, levando uma cabeça de Medusa na mala. Isso mesmo, haviamo-nos esquecido de dizer que olhar a realidade de outro modo não é só uma forma de vencer o que há de cruel, duro e desumano nela senão também um modo de tê-la como arma em nosso próprio benefício. Perseu carregava a cabeça da Górgona dentro da capanga o que o tornara invencível. (vejam que lição: vencer a dureza da realidade nos torna invencíveis) Toda vez que enfrentava um inimigo imbatível, retirava da capanga, segurando pelos cabelos de serpentes, a cabeça do monstro e mostrava ao inimigo que, ao fitar o semblante da medusa, virava uma estátua de pedra inofensiva.
Por fim, pensamos que todo o mundo tem uma medusa a atormentar e que precisa ser decapitada. Uns demoram mais para vencê-la, outros são eliminados pelo seu olhar terrível. Muitos que a vencem não sabem usá-la em defesa própria. Mesmo assim, cada quem escolhe o ângulo mais estratégico, pelo qual acredita que corre menos riscos de se sucumbir. É por isso mesmo que pessoalmente não estimulamos ninguém a seguir nossos passos. Os movimentos que aprendemos a esboçar, como desvios da dura realidade, podem configurar-se como abismos para os outros. É por isso também que ficamos atentos às soluções que os outros acham em seus enfrentamentos, aproveitando as soluções que amenizem nossa luta e repudiando soluções que podem nos atirar ao abismo. HÁ BRAÇOS! (alan, junho de 2007)

terça-feira, maio 13, 2008

COMENTÁRIO DE ENOCH CARNEIRO

Com sua veia de poeta e contador de histórias, o escritor Enoch Carneiro teceu, abaixo, um generoso comentário a este blog:

Prezado Alan.

Li tudo numa empreitada só. Seus textos são bacanas, a prosa é bonita, coerente e perfeita, coisa de professor, de formador de opinião. Chico de Elói sempre me inspirou, "deus véio". Quando você mergulha na filosofia se sai muito bem, porém, o poeta em você grita mais forte e você derrama sua alma. Sua poesia tem uma musicalidade fascinante, tem o seu modo de falar, é como se fosse a alma de todos os poetas escrevendo de uma só vez. Os poetas são imortais, minha poesia não é minha, nem a sua é sua propriedade, pois a parte sombra da gente fala mais alto. Acho ótima a falta de compromissos dos poetas, são todos uns loucos, inclusive você.
Sua filha é sua cara, olhos nariz e boca, a cor predominante não requer nenhum exame de DNA. A genitora, com todo respeito que companheira de poeta necessita, também transpira muita energia, uma verdadeira musa, parabéns por tudo, pelo mote que você canta, um abraço do tamanho do Beco de Braulino.
A Serra Azul precisa ser cantada e você o faz com maestria. Às vezes eu fico pensando como é que uma caneta vulgar escreve uma poesia, de que forma as letras estariam arrumadas dentro dela. A memória dos computadores, sem a manipulação da nossa sensibilidade, não serve para nada. Coisa estranha, a vida é um pulo no escuro, um buraco sem fundo que a gente nunca sabe onde vai chegar.
Desde que por gente me conheço, sempre fui fascinado pela literatura, amante das artes e admirador da inteligência criativa. Nunca gostei de capinar ou cortar de foice ou facão. Quando eu era um garoto, de badogue no pescoço, perambulava pela Rua do Cascalho e pensava que um dia tudo poderia me levar a canto algum. Imaginava um grande vazio reservado aos pobres de Uibaí, um buraco negro. Sempre que conseguia uma página de revista de mulher pelada fazia festa, pois àquela época as revistas eram raras e vendidas no varejo, cada página dobrada valia muito dinheiro; calcinha das companheiras, só se via no varal. Tudo foi mudando, as roupas femininas foram encolhendo tanto, nem sei para que ainda existe revista de mulher pelada. Dia desses, uma vizinha minha de Quixabeira comprou um metro de pano na loja de Zé Biscoito e fez cinco saias, dois corpetes e da sobra do tecido fez um coador e uma capanga grande para o namorado. Os tempos mudaram meu poeta. Vi meu povo crescer e invadir as faculdades, vi nascer das entranhas do Cascalho, professores, médicos, engenheiros e poetas. O tempo foi fermentando tudo: garotas de doze anos exibem seios formados, andam que nem pintos de granjas, são os suplementos alimentares. Os velhos aposentados renasceram. O mundo que me parecia vazio foi tomando forma, já não sinto um buraco negro em minha frente, não compro mais revistas comprometedoras de forma clandestina. A droga mudou de endereço, descobrimos juntos que nada existe que não possa ser revelado. Nós mudamos e o mundo mudou, precisamos ensinar aos outros, aos retardatários, a todos que não acreditaram nos próprios sonhos, que existe o caminho das pedras, o pulo lateral que transporta um nordestino da Rua Grande para a UNB, ou para qualquer faculdade, o caminho do sucesso sem mácula. Estamos hoje no meio dos vencedores, somos a elite transparente que pode contar sua própria trajetória. Parabéns mais uma vez e desculpe-me pelo texto apressado, escrevi-o com o coração de poeta. Se faltar pontuação fique à vontade, encha um litro de pontos e vírgulas e espalhe à vontade, meu intuito foi elogiar o seu talento, sua capacidade de se comunicar, o texto foi feito para você, não foi escrito para nenhuma dissertação de mestrado. Se misturei prosa e poesia, me desculpe, foi a forma de dizer que é assim que eu entendo você. Feliz o homem que não entende uma pedra como um obstáculo, o nosso inconformismo hoje nos permite cantar a nossa Serra Azul.

Grande abraço do leitor.
Enoch Carneiro.

segunda-feira, maio 12, 2008

DO ACASO AO MISTÉRIO


Como diria Drummond, nasci em uma cidadezinha qualquer. Mas é exatamente nessas cidadezinhas longínquas, onde o tempo congela os hábitos e as cenas cotidianas repetem-se anos a fio que se escondem os mistérios mais fantásticos. Acontece que por trás do fixo dos comportamentos quase sempre desabrocha o inédito.

Regularmente volto a minha cidade natal. Quando ao longe começo a avistar o azul da serra que abriga o vale cruzado por ruas de casas modestas, eclode em mim um tipo de emoção motivada por saudosas imagens da infância. Ao chegar inevitavelmente saio a perambular pelas ruas da cidade e pelos povoados, sentindo o sabor do reencontro. Há um povoado em especial que sempre visitava para ver, no único arruado de casas, o espetáculo dos flamboyants floridos. Cada casa tinha uma dessas frondosas árvores na porta. Com a chegada da primavera, a rua ficava colorida de lado a lado. Era bonito de se ver. Disse era e disse bem, pois o inédito aconteceu.

A última visita que fiz ao Povoado da Lagoa foi melancólica. Em frente as casas apenas os tocos dos grandes troncos. Havia silêncio e desolação. Os flamboyants calaram seu riso colorido para sempre. Na ponta da rua, já perto do brejo, uma pilha triste de troncos e toras de madeira jazia silenciosa como um grande cemitério. Desapontado, parei à porta de uma casa e perguntei ao senhor que ajustava as bruacas num jegue porque derrubaram todas as árvores da rua. O homem olhou-me com certo desconforto. Respondeu, mesmo assim, que uma cigana hospedara-se na primeira casa da entrada da rua e, ao partir, alertara ao dono de que a árvore do terreiro dele era maldita, de que em toda casa com flamboyants à porta iria morrer gente. E era verdade pura, continuou o lavrador, pois o dono da casa morreu um mês depois e, passados quinze dias, a vizinha da segunda casa também descansou das aflições terrenas... Então o medo da maldição tomou conta do povo e as pessoas passaram de casa em casa cortando as árvores amaldiçoadas.

Era inacreditável... Como as pessoas preferem o mistério à coincidência? Parece que a simples imagem da cigana, envolta em presságios e imprecações de oráculo, carregou de medo e sensações sombrias o mero acaso. O desconforto da rua sem suas alegres árvores pagou o conforto da alma daqueles humildes produtores rurais.

Depois de uma muda peregrinação, tomei o rumo da cidade. Já em casa, quando o sol começava a se esconder atrás da serra, fui à padaria da esquina buscar os pães do lanche. Ao lado da porta do estabelecimento alguns feixes de lenha: angico, aroeira e canela de velho. Quando entrei, uma velha conversava com o padeiro: - O senhor num ta usando aquela lenha agourenta, ta? Deus me livre de botar um pão assado com o calor daquela coisa na minha boca! A velha saiu meio desconfiada. Perguntei ao padeiro qual era o problema.: - Ah, meu filho, comprei uma carga barata de lenha de flamboyant lá da Lagoa, aí o diacho do povo cismou de não comprar mais pão aqui comigo. Foi o jeito gastar dinheiro com outra carga. Não sei, mas parece que essa gente não gosta muito do povo da Lagoa. Quem vai lá entender gente, né? Agora tô penando com a freguesia! – De fato, quem vai lá entender gente! – foi o que respondi ao padeiro. Nem sei se valeria a pena contar o resto da história. ( alan, em 2003)

domingo, maio 11, 2008

MENINA OFERECIDA

Para Nemi e Lobeira

Na Canabrava tem uma menina bandoleira que vive na boca do povo. Já até botaram apelido nela: uns a chamam de Fubuia, outros de Birita e Pinga, mas a brejeira detesta esses apelidos e prefere ser chamada formalmente de Cachaça, seu nome de batismo.
– Mais respeito, seu bando de pé-inchado! – assim provoca com os sujeitos que vivem de boteco em boteco espalhando que estão comendo Cachaça.
– Por que vocês não vão trabalhar? – arremata, com um suspeito moralismo indignado. Cachaça se irrita com a permissividade dos freqüentadores de bar que se metem a difamá-la, mas na verdade ela é muito fuleira, vive escanchada em balcão, não sai da praça, não perde velório nem festa e quando já tá bem concentrada, dana a falar bestagem:
- Ontem, o dono do bar enfiou uma raiz todinha em mim e eu achei foi bom, chega fiquei macia! – diz ela, mais metida do que rainha do milho em festa de São João.
O povo anda de saco cheio de Cachaça, mas a danada, sem um pingo de vergonha na cara, insiste em se oferecer para homens casados, rapazes, mulheres e até crianças. Cachaça pensa que Uibaí é Sodoma e Gomorra pra ela bancar toda essa esculhambação. Na verdade, Cachaça merece é ser chamada mesmo de Fofa Olho, de Venenosa, pois é uma diaba malvada, que não vale uma rapadura, uma cana roxa. A dita cuja é amante da vadiagem e se compraz em ver todo mundo ir ter com ela na alcova, na taberna, no brega ou em qualquer lugar. Prova disso é que pegaram Tarcísio Potão, em plena manhã de segunda-feira, comendo a ordinária na calçada de Fulosina. Neto Velho, o povo fala que nutria paixão violenta pela ingrata e acabou abandonado, curtindo uma doença passada por ela. As mulheres, enciumadas, botaram até apelido nos homens que andam atrás dessa desnaturada. Quando passam em frente a algum bar, vão logo desabafando:
- Lá estão os cachaceiros procurando a perdição!
- Essa bicha é perigosa... Tem o coração de pedra! – esse foi o recado de amante inveterado deixado por Quinca Galha. Que o diga Lobeira, um dos que volta e meia agarram ela à força e passam um mês comendo. Diria o mesmo, Ari, que escapou das garras da bicha, depois de algumas desilusões ou Carlinhos, se não tivesse sido assassinado pelos golpes do sufocante amor dessa roceira. Mas entra geração, sai geração, essa Lílith desvairada, embora já não tenha tanta moral, acaba fazendo algumas vítimas. O problema é que a danada tem fã-clube em toda parte, inclusive em Brasília, que não a deixa cair no ostracismo. Com freqüência desce a Uibaí o comboio de apreciadores da malvada, doido para comê-la. A barafunda é da pesada: tem neguim que come a maldita em fundo de boteco, em beira de baixão, em cima da serra e outros, ainda, fazem até grupo para traçar a treiteira. Fiquei sabendo inclusive que essa gente tem uma tara muito estranha: eles andam comendo ela com farinha! Há braços! (alan, em maio de 2005)

A vida é uma guerra



Assim dizia o mestre Sun Tzu: " Confiar nos incultos e não se preparar é o maior dos crimes. Preparar-se de antemão para todas as contingências é a maior das virtudes".