sexta-feira, abril 28, 2006

MEMÓRIAS DE UMA RUA ABANDONADA



Aos eternos moradores do Cascalho

O Cascalho é uma rua curiosa. Por um momento a gente pensa que ela é extensão da Rua Grande, já que o leito do Riacho Canabrava atravesa a Matinha e segue sinuoso pelos fundos dos quintais até despontar lá adiante próximo à entrada do Cancarote. Se realmente fosse a continuidade da Rua da Igreja teríamos de dizer, para fazer justiça, que ela é a continuidade abandonada em todos os sentidos. Entretanto, como todo abandonado aprende a sobreviver, a gente vai ver que o Cascalho sempre teve abundância de vida e de tudo.
Até os anos oitenta, quando o candeeiro ainda era uma necessidade para muitos, o cidadão podia encontrar na esquina do prédio velho, a fábrica de seu Zuza Flandeiro sortida de vários modelos dessas rústicas luminárias. Podia também encomendar roupas da moda à costureira Bernadete. Descendo mais um pouco, ao lado de Belita de Ricarte, quem precisasse de algum móvel poderia encomendá-lo na marcenaria de Argeu. Passando uma ou duas casas havia a sapataria de Mané Sapateiro, aliás, a rua contava ainda com a sapataria de Garibalde, em frente à casa de Sinezão.
Tamboretes tembém você encomendava no Cascalho, lá na tamboreteria de Deblande, em frente á casa de Dona Maroca. Ali se encontravam os mais resistentes tamboretes feitos de são joeiro maduro. Deblande, com mais de um metro e noventa de altura, nas horas vagas atuava como juiz de futebol, no único campo da cidade, também privilégio do Cascalho. (nessa época ainda nem existia o Betonicão, lá na saída pra Hidrolândia) O filho da velha Cândia era um juiz desprovido de apito, mas durante o jogo carregava uma peixeira feita de Corneta engastaiada na cintura, proporcional ao seu tamanho. Mediante aquela prova concreta de autoridade, ninguém questionava a arbitragem. Quem teve o prazer de assistir aos sensacionais jogos do Fluminense de Uibaí, com Chiquinho de Jaime no gol, Sinozinho, João de Odetina, Quinquinha no ataque e Chiquinho de Paulo zagueirão, principalmente aos treinos, sabe do que eu estou falando. Suspeito que Deblandão só atuava nos treinos.
Desculpem-me a irresistível digressão, estava falando de tamboretes. Pois bem, quem não quisesse os tamboretes de Deblande poderia encomendá-los em Leno Sanfoneiro, mais embaixo, próximo à casa de Domingo Dodô, este, um maluco que descia o cascalho com uma bicicleta barra circular em toda a velocidade, atravessando tudo quanto é batume de mato, indo parar na porta da casa de Leno, com os dois pneus furados, cravejados de espinhos de malva de garrote. Era uma diversão meio sem lógica, mas a gente sabe que maluquice dispensa lógica. Voltando novamente aos tamboretes, Leno, além de fabricar esses importantes utensílios, ainda fazia a fezinha na sanfona, animando uma ou outra farra.
Tanto da casa de Dona Maroca quanto do ranchinho de enchimento de Jubilino, criador de toda espécie de pássaro canoro, dava pra ver quase que frontalmente, entre a saída para o Janjão e a entrada para a Veredinha, a venda de Dona Antônia, mãe de Marinezão e Tineco, entre outros. Era uma birosquinha, mistura de venda e bar. A velha administrava a família com pulso firme, num sistema de matriarcado absoluto. A ela pertencia ainda a única casa de farinha da cidade, também no Cascalho, pouco abaixo do Curral da Matança, do outro lado da rua.
O Curral da Matança era um curral velho feito de madeira de lei no qual os bois ficavam recolhidos esperando o abate. Dia de abate dava uma mistura de medo, prazer e aventura ver aqueles bichos furiosos, como que pressentindo a morte, sendo laçados pelos vaqueiros Jaimim e Domingo Paieiro. A meninada ficava atônita diante de homens domando a força bruta, com igual brutalidade. Tudo ali no Cascalho, o bicho imobilizado levando uma machadada no cachaço ou um tirão de rifle bem no meio da testa.
Subindo a rua, a partir do Curral da Matança, ao lado da casa de Deblande, havia o chiqueiro de Verneú, um criatório grande que misturava caprinos, ovinos e porcos de raças variadas: Duróc, Piau, Baé, Beradeiro. O cheiro não era dos mais agradáveis, porém, em manhã de venda e capa de porco era divertido ficar trepado na cerca de sisal vendo os homens estabanados atrás dos bichos. João Capa Porca afiando o canivete e os gritos do suíno sendo emasculado ou esterilizado.O porco sem bagos saia meio envergonhado e a porca sem ovários meio esguia e acanhada. Na pesagem havia cada porcona de quinze arroubas desafiando os pesos da balança que era de se admirar. Hoje, a travessa que liga o Cascalho àquela construção faraônica inacabada, que dizem ser de um ex-padre, ocupa exatamente parte do espaço do antigo Chiqueiro de Verneú.
Mais acima, muito depois da casa de Dona Nair de Valdivino, onde de manhã cedo se buscava o leite fresquinho saído da ordenha, quase no meio da Rua do Cascalho, tínhamos o mais generoso pomar de Uibaí, a casa de Dona Mariinha de Leandro, com um cercado imenso sortido das mais variadas fruteiras. Na casa da bondosa e paciente Dona Mariinha sempre era tempo de alguma coisa. Quando não era de manga, era de pinha, quando não tinha pinha, tinha caju ou serigüela ou côco. A meninada se fartava em cima dos pés de manga-mamão, nos pés daquela manguinha miúda fiapenta e deliciosa, debaixo dos cajueiros ou atirando pedras nos coqueiros muito altos, em busca de cocos velados.
Para quem achava que a vida não deveria ter muita graça numa rua abandonada como aquela, aviso agora que nem falei do parque de vaquejadas que existiu por ali, nem do alarido de carros e cavalos com toda sorte de gente vinda dos povoados no dia da feira. Nem das manadas bovinas que se encontravam a caminho do pasto, obrigando os marruás dos rebanhos a encenarem um espetacular duelo de chifres e forças em plena manhã de primavera. Nem das vacas paridas escorraçando transeuntes desavisados e botando gente nos pára-peitos de portas e janelas; nem em Zé de Nica cantarolando pela rua suas canções de Roberto Carlos, alheio a tudo e a todos ou em Hora é Esta, saudoso personagem, entoando diuturnamente seu refrão, como um relógio cuco: -A hora é esta! Ou em Seu Genéis, pai de Dona Zilda e de Dimari, um homem de força descomunal que, já sexagenário, arrastava Cascalho acima uma árvore seca inteira, trazida sabe-se lá de qual distante capoeira, para cortar no machado diante do ranchinho em que morava; ou no negro Soizinha, pagodeiro, cheio de manha africana e superlativos, figura simpaticíssima. Muito há do que se falar sobre aquela rua de minha infância e adolescência, a única atualmente a contar com juazeiros frondosos a derramar suas sombras frescas sobre o abafado da tarde.
O nome pomposo de general, o povo rejeitou e fez bem. Rua que tem vida não merece nome de general, a bem da verdade, nome nenhum que cheire a imposição. Rua que tem vida se autonomeia. E é isso que acontece, não se vê gente falando na rua General Costa e Silva. Prefere-se a metonímia feita da matéria que talvez mais importuna o povo: o cascalho pedregoso que levanta uma poeira branca e incômoda, a medida em que os carros vão passando. Eis a Rua do Cascalho que também aceita ser chamada de Rua Pé de Galinha, nome inventado por Ri de Valdivino, quando este observou corretamente que a rua se abria como um pé de galinha: um dedo seguindo em direção ao Mane Janjão, outro seguindo para a Veredinha e um último indo rumo a Boca Dágua.
(alan oliveira machado, abril de 2006)

domingo, abril 16, 2006

VIVA A INQUIETUDE!

ALAN OLIVEIRA MACHADO A SEU DISPOR!

Meus amigos, afetos e desafetos, neste momento abro mais um espaço para a agitação, porque quem fica parado é poste ou mijador de cachorro. O objetivo deste espaço é criar uma interação mais íntima como meus amigos, amigas e conterrâneos. Criar uma interação que, pontuada por questionamentos, dúvidas, perturbações de ordem variada, acirre em nós os conflitos, gerando teses, antíteses e sínteses ou simplesmente linhas de fuga, tangentes, intensidades, nomadismos, bricolagens... Este espaço é pra pulsar! latejar! ferver, fazer máscaras balançarem ao sabor da existência e de todas as facetas que ela nos oferecer.... HÁ BRAÇOS alan

quinta-feira, abril 13, 2006

BAR CULTURAL (12 de abril de 2006)

BAR CULTURAL

Para Helga Oliveira Machado.

Esta é uma daquelas idéias que a gente se sentiria feliz se alguém copiasse e saísse à frente para realizá-la. Imaginem comigo a existência de um singelo imóvel na Praça Velha ou Nova de Uibaí com o nome Bar Cultural, acompanhado das subscrições: Aqui você pode encher a cara de conhecimento! Aqui você pode indagar o quanto quiser sobre a existência, sobre o mundo, a vida, o amor, a arte... E não precisa pagar a conta!
O bar seria tradicional, quer dizer, com um vão cheio de mesas, tendo ao fundo o balcão. Por trás do balcão, o atendente pronto a servir os freqüentadores. Nas paredes, no lugar de cartazes de loiras oferecendo cervejas, teríamos cartazes de escritores e escritoras das mais distintas lavras. Nas prateleiras, em vez de bebidas variadas, livros e mais livros. Livros, livros, livros... De todos os calibres! Literatura: poesia, romances, teorias literárias; Filosofia em variadas correntes, Política, Antropologia, Psicologia, Psicanálise Lingüística, Semiótica e demais ciências humanas; curiosidades, cultura mundial, e mais e mais e mais...
Então, me acompanhem, caros leitores, nessa viagem imaginária: entra um velho freguês no bar e o atendente corre ao encontro dele:
- Vai de que hoje, seu Gleissom?
-Hoje não estou bem, quero encher a cara de Fernando Pessoa. Traga aí uma dose bem grande do Livro do Desassossego e uma porçãozinha de Cioran para tirar o gosto!
Aí o atendente, como todo bom barman, dá aquela sugestão eivada de experiência:
- Pelo seu estado, eu recomendaria uma talagada sarada de O Guardador de Rebanhos! E Cioran já foi servido na mesa de dona Daiane, ao lado. Temos como alternativa As Dores do Mundo, de Schopenhauer, que está desocupado ali na mesa de Popoca. Se não for do agrado, o senhor poderá escolher aqui no nosso cardápio algum escritor ultra-romântico como acompanhamento.
No Bar Cultural seria assim, no dia em que o Clube Canabrava anunciasse uma Noite de Seresta, o bar anunciaria uma Noite de Machado de Assis. Na semana em que o Voz do Povo anunciasse o Baile da Saudade, o bar anunciaria o Corpo de Baile, de Guimarães Rosa. Na medida em que nos outros bares se toma uma ordinária Seleta, no Bar Cultural se consumiria a melhor Seleta de Drummond, a Seleta de Bandeira, a de Ruben Braga, a de Mário, a de Oswald, a de Manoel de Barros, a de Leminski, entre muitas opções. Lá estaria sempre acessível a melhor safra de Cecília, Clarice, Raquel, Lígia, Ana Cristina César... Isso sem contar com as Raízes locais: Pita, Enoch, Valmir, Bebeto, Pedro Lopes e aqueles miseráveis do Boca do Inferno entre tantos.
Esse bar seria a salvação? Claro que não, mas muita gente sairia Em Busca do Tempo Perdido ao descobrir que Proust cura qualquer dor da alma, que Cecília faz flutuar, que Manoel de Barros nos recriancifica. Que Dostoiévski limpa mais o espírito do que uma garrafa de Chave de Ouro. Aliás, chaves de ouro só estariam mesmo à disposição nos sonetos parnasianos oferecidos de brinde aos freqüentadores da casa.
Aí, todo dia teríamos o bar cheio. O enleio, o eu leio. As mesas propagando doces e barulhentas indagas; e recitais e happenings e delírios e risadas e suspiros... Nos arranca-rabos, muitos palavrões e quão divertidos de se ouvir: Seu sartriano maluco! Sai pra lá com sua ambigüidade machadiana, liliputiano duma figa! Não suporto esse seu bovarismo! Trator cartesiano! Niilista! Balzaquiana indigesta! Desapareça com esse caráter macunaímico! Isso é um delírio foucaultiano, uma fraqueza pós-estruturalista! Uma frigidez positivista. Filhote de Maquiavel, terrorista bakuniniano! Macaquinho pós-moderno, pereba edipiana! Isso é delírio interpretativo... Seria divertido sim, porque as pessoas certamente não seriam mais as mesmas e toda a hostilidade não passaria obviamente de um jogo: o gozoso jogo do saber, do saber-se. O Ensaio Sobre a Cegueira. O ir do verme ao ver-me, o transver, o desver... Seria um sonho muito bom.
Pois bem, amigos leitores, antes de escrever este texto havia tomado uma boa dose de Eça de Queiroz. Tinha consumido avidamente o conto José Matias. Sei que não tem muito a ver (ou teria?), mas experimentem. Se for convincente a gente coloca no cardápio do Bar Cultural.
Há braços! (alan oliveira machado)

sexta-feira, abril 07, 2006

COMIDA DE ONTEM - I

SORRISO NEGRO (Cartas escritas a Lívia, Aline e Flávia em 1996)

Certo dia, aqui no quarto da Ceu-3, afagávamos idéias despropositadamente quando um colega me presenteou com uma investida interessante. Ele falava: Você já reparou no sorriso dos negros? Os negros sabem sorrir. Quando sorriem, suas almas como incenso mágico exalam e contagiam tudo ao redor. Não consigo captar isso nos brancos. Eles sorriem em parcela, como se estivessem perdendo uma parte de si. O sorriso dos brancos denota avareza...
Eu guardei isso na cabeça, até que comecei a reparar no sorriso dos negros africanos com os quais convivo na universidade. Fiquei perplexo. É verdade. Há algo de mágico no sorriso negro. Num primeiro momento quis me enganar achando que podia ser o contraste de cores entre a pele e os dentes brancos, o motor de tal impressão. Desisti, não podia ser isso. Concluí, ao resgatar na memória o sorriso de Grande Otelo nas chanchadas de Atlântida, o sorriso de quem agradece aos céus de Stevie Wonder, as eventuais gargalhadas de Ray Charles ao piano... Não, não podia ser. O sorriso dos negros tem uma totalidade mística. É onipotente assim como Deus. Quando eles sorriem Deus se manifesta.
Estive constatando, na convivência com os africanos, que as religiões “antigas” da África, aquelas que elegem o corpo humano como a casa dos Deuses, têm uma influência muito grande, apesar das colonizações, sobre a vida deles. Eles tratam o corpo como se fosse uma coisa sagrada, uma igreja. São sempre bastante vaidosos: andam bem alinhados, com uma elegância em cores, penteados e indumentárias que chega a soar esquisito para nossas paupérrimas cabeças, acostumadas a associar negro à pobreza e marginalidade. Mas, pouco importando o que os outros (nós) podem pensar, estão eles assim, sempre imponentes nas suas excentricidades.
Do mesmo modo que as igrejas de Salvador comunicam a imponência do Deus Cristão, os corpos negros africanos, opulentas esculturas de ébano, são frutos – quem sabe – dessa religiosidade ancestral e atual que resistiu a todo o processo de colonização da África. E eu me pergunto, onde entra o riso nesta história? Justamente aqui: tudo que vem de Deus tem que ser poderoso, infalível, perfeito, contagiante. Daí aquele riso sagrado de Louis Armstrong ser o que é. Se avaliarmos a totalidade, não só o riso, mas a música negra, a dança, os rituais e demais manifestações são inefavelmente belas e fortes. São experimentações do êxtase divino.
Aquieta diacho com tanta puxação de saco! (há, há, há, há,). Eu brinco, porém falo de coisas que volta e meia ascendem a sensibilidade. Não são só os africanos que têm essas coisas culturais (o que todo mundo sabe). Esses dias estava lendo sobre os Etruscos e inclusive me identifiquei demais com os costumes. Era um povo muito corporal, pelo que parece vivam o presente com intensidade. Assim como os Etruscos, existiam os Trácios, povo festivo e somático. Há até suspeitas de que o mitológico culto a Dionísio (Baco) surgiu com os Trácios: eles faziam constantes festas com cantos, músicas, comidas e sexo rolando a torto e a direito. A maior orgia. Dizem que essas celebrações eram realizadas em cumes de montanhas, durante todo o dia. No frenesi as pessoas alcançavam uma espécie de transe. Atribuíam esse transe à manifestação do Deus Dionísio no corpo das pessoas.
Mudando de pau pra cacete, recebi sua carta minutos após terminar a leitura de Metamorfose, de Kafka. Porra o livro é angustiante, mas nunca vi leitura tão instigante. O interessante é que a carta coincidiu com o clima do livro: solidão e miséria existencial. Na novela de Kafka, Gregor Samsa, o personagem central, é um caixeiro viajante mecanizado do qual depende uma família ociosa: mãe, pai e irmã. Certo dia esse tal Gregor acorda metamorfoseado em um grande e repugnante inseto, ao que parece, uma barata. A partir desse momento a família se põe a trabalhar já que não tem o filho para a sustentar. Gregor não perde a sua consciência humana o que gera um conflito terrível com a sua asquerosa condição de barata. Na verdade são dois conflitos. Um interno e o outro externo, com a família que o isola no quarto, na mais profunda solidão. Kafka narra de forma cruel e implacável a história da família de Samsa.
No embalo da leitura de Metamorfose, quando li no primeiro parágrafo da sua carta aquela descrição dos “ripongas” no quarto, só consegui imaginar o quarto de Gregor cheio de baratonas iguais a ele, refugiadas na impossibilidade de se relacionar com o mundo humano. Impotentes e absurdamente perdidas em seus medos. Já havia inclusive tentado refletir sobre isso. O Movimento Hippie teve cabeças e idéias brilhantes. Cabeças e idéias que mudaram o nosso modo de ver o mundo. Só que, como todo movimento, quando atingiu a massa, apodreceu. Tudo quanto é doente, tudo quanto é burguesinho revoltado quis ser hippie. Não por convicção ou por ideologia, mas por incompetência para enfrentar seus problemas, para resolvê-los. Por covardia, quem sabe.

O Movimento Hippíe virou um grande “sanatório” e até hoje tem gente que foge dos seus problemas num estilo de vida semelhante. O pior é que esses pobres diabos não sabem nem o que é Beat Generacion end Drop Out.

Nada me preocupa tanto no momento quanto a situação de Zé Ipê*. Não que eu queira fazer alarde, é que a gente sempre quer ver o pessoal que a gente ama numa boa. Fiquei sabendo que ele caiu fora de Salvador. A família canabrabeira, não obstante a boa aparência, tem uns problemas de formação de personalidade fodidos, que a gente precisa estar prestando um pouco mais de atenção.
O pessoal cresce e continua convivendo com conflitos edipianos. Se a gente for pensar pela ótica de Félix Guattari e Gilles Deleuze em o Anti-Édipo, nosso pessoal que sem cessar põe panca de progressista, e outros istas, cai numa tremenda contradição. Guattari e Deleuze sustentam em o Anti-Édipo ao contrário de Freud, que o triângulo edipiano não é uma coisa natural da formação humana. Mas sim da formação burguesa. Acaba sendo um mecanismo de formação do comportamento do indivíduo ideal do sistema. Para os dois filósofos, então, o Anti-Édipo seria o tipo de indivíduo autenticamente revolucionário. Ele não faz as coisas porque a mãe quer, o pai quer, o Estado ordena, a igreja, a escola... E sim porque sente necessidade interior, vontade própria. O Anti-Édipo seria o esquizofrênico. Não aquele que está fora da realidade porque é doente, porque não tem capacidade para enquadrar-se nela e sim aquele que está fora dela porque quer estar, porque satisfaz seus desejos próprios; vive em consonância com seus impulsos e não alimenta os conflitos criados pelo policiamento da sociedade burguesa.
O que eu imagino é que o nosso pessoal avança, mas na hora em que surgem os conflitos morais burgueses, que inclusive boa parte das vezes são inconscientes, ele não consegue compreendê-los, e não tem clareza suficiente para enfrentá-los. E aí começa a depressão seguida de fuga para outra forma de vida que acredita ser diferente ou que alivia: o colo da mãe, o mato, Uibaí... Alguns, sem muito sufoco, enquadram-se de vez no Sistema. Outros ficam estilo Paula Bela*, um tempo santa e um tempo puta... (eterna oscilação). O que é pior de tudo isso eu não sei.
Quando em perguntam qual é a saída eu respondo sem titubear: autoconhecimento meu velho, autoconhecimento! As pessoas nunca vão saber combater ou lidar com a moral burguesa (e tudo de comportamentos nocivos que ela gera) sem saber o que é moral burguesa neles mesmos. Os conflitos edipianos, enfim os valores familiares são cristalizadores dessa moral, desse Sistema. A gente precisa saber o que há de nocivo no Sistema e quanto dessa nocividade trazemos em nós, para podermos ir superando aos poucos, sem nos violentar, não é?
Há tantos exemplos disso. Vejamos um: a necessidade de ser aceito pelos outros é normal, mas temos que nos auto-regular, regular a ansiedade, aprender a nos ver, a ver quem é o outro para que nossa necessidade não se torne uma obsessão, uma patologia tal como a gente vê por aí: um monte de vermes, se submetendo a qualquer coisa para ter a atenção de alguém. Algumas obsessões também produzem uma necessidade de privatizar as coisas, sejam elas pessoas ou objetos, gerando em conseqüência um autoritarismo e um abuso de poder tão desgraçados, não é mesmo?
Por fim, escrevo apenas conjecturas, indagações sem nenhuma preocupação teórica. Acho que isso precisa ser feito. Temos que correr o risco de pensar sobre isso constantemente. O contrário nos aproxima da possibilidade de perder a saúde e vermos, sobretudo, nossos amigos, nossos queridos amigos se perderem na depressão e no desvario. Ninguém, isso é certo, quer repetir aquela velha declaração de Allen Ginsberg: “Vi as melhores cabeças da minha geração serem destruídas pela loucura.”
alan oliveira machado, junho de 1996.

OS OUTROS, O INFERNO
Caras amigas, aqui estou novamente, no exercício da escrita. Desta vez, no entanto, despreocupado com os rótulos de pessimismo ou otimismo. Rótulos são apenas rótulos, quando se quer. Preocupo-me tão somente em externar minhas inquietações. Talvez isso não interesse a vocês, mas como vinha refletindo tempos atrás: nesses dias de hoje o refúgio de quem pretende ser ouvido ou lido é a carta. Pelo menos que eu saiba, as pessoas ainda não se negam a ler uma carta recebida. Negam-se a escrever, mas ler, ainda o fazem com alguma satisfação ou ao menos por curiosidade.
Antes de mais anda gostaria de dizer que estou um pouco atordoado, é que o quarto ao lado roda música sertaneja em alto volume boa parte do dia. Neste período de greve, então, o agroboy vizinho se entrega a sua bitolação sonora e a violência agride triplicadamente os meus tímpanos. Como é triste a massificação. Essa massificação é a coisa mais agressiva que eu já experimentei aqui por essas terras de pequi, arroz e bosta de vaca. (o exagero faz parte do momento). Pode ser a música mais agradável do mundo, se repetida de forma tão exaustiva como o faz a mídia, a porra se torna tediosa e repugnante. Nesse caso minha tendência é agir quase como aquela criança que ganha o brinquedo novo, usa, abusa, desmonta, se diverte com os pedaços e depois os abandona em qualquer lugar, saindo em seguida a caça de novos prazeres. Obviamente não é o que acontece com o meu vizinho. Depois disso fica fácil entender porque. Sartre disse que “o outro é o inferno”. Ele devia ser vizinho de algo semelhante ao agroboy aqui do lado. Falo assim, mas quem me garante que eu não sou o inferno de um monte de gente por aí? Na verdade todos nós trazemos conosco uma infernidade: nossas peculiaridades, essas fagulhas que fazem com que os humanos não sejam nunca iguais. Os vírus que “adoecem” por dentro as idéias totalizantes, as massificações, as idealizações que criam uma falsa realidade. Esses dias eu vi um exemplo disso lá em Brasília. O governador no meio do povo com aquele acesso de populismo: um abraça-abraça, um pega-pega, “governo popular”. Uma velhinha sexagenária, sabe-se lá como, ao abraçá-lo quebrou um ovo podre na cabeça do homem e o sacana virou para a câmera com um sorriso amarelo e disse: “ovo é bom pro cabelo”. Mas ele se esqueceu, na hora da desculpa, de que era careca. E eu penso cá comigo: essa velhinha sexagenária não é única e original? Ela, botando sua infernidade para fora, não se tornou o inferno do governador? É evidente que sim. Ela não é pior nem melhor do que ninguém, como todos nós ela é única.
Tudo isso é vulnerável a discursos moralizantes. Tudo isso dá espaço para quem quer destilar um pouco de moral, nem que seja clandestinamente escondida nas gavetas das palavras, frases e orações. Minha desconfiança não é gratuita. Ultimamente ando meio arredio á “moral”. Todo tipo de moral. Seja moral dos instintos, budista, cristã, islâmica. Mas devo reconhecer que minha recusa maior pousa sobre a moral cristã. Não sei aonde encontro tanta energia para pisoteá-la. A moral é um dos refúgios da decadência. O decadente é niilista, não no sentido comum, ou seja, aquele que não acredita em mais nada, mas no sentido filosófico, quero dizer, aquele que não crê no que está aqui, no real, no que se oferece. Nesse sentido, as religiões, a moral, as utopias são niilistas na medida em que idealizam o mundo, a vida, o ser humano. O homem, por exemplo, deixa de ser carne e osso e passa a ser conceitos morais, virtudes, espiritualidade. Já que o homem é isso, o que não tiver esses atributos de humanidade pode ser dizimado, hajam visto os Carandirus, as Candelárias, para não falar dos sem-terras, das Bósnias e Chechênias da vida. Quem não sabe que o mito religioso do paraíso sempre foi um grande motor da negação da realidade crua e nua? Tem coisa mais desgraçada do que "trabalhar, pensar, sentir, sem necessidade interior, sem uma profunda eleição pessoal", sem prazer, como autômato do dever? Isso é a cara da decadência. Mais precisamente, a receita para a imbecilidade. Fernando Pessoa não me deixa mentir, (esse poeta genial sabia muito bem o que estou falando). Basta ler a poesia Tabacaria que ele escreveu, vocês perceberão. Transcreverei apenas um pequeno fragmento: “Escravos cardíacos das estrelas, conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama; Mas acordamos e ele é opaco. Levantamos e ele é alheio. Saímos de casa e ele é a terra inteira. Mas o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.” Tudo é tão grande que há tanta concretude, mas por força de alguns “valores” (o valor: mais uma vez uma coisa intocável, impalpável, abstrata.) nos recolhemos como caramujos para dentro de nossas mansardas e ali alimentamos o medo da nossa transitoriedade. Ficamos esperando a eternidade e fenecemos como tudo fenece, mas não igual a tudo que fenece. Heráclito tem a mais bela e irrefutável premissa: “A única coisa permanente no universo é a mudança.”A decadência nossa reside também em esquecer essa lição sábia. Pois eu digo o seguinte: tem horas que eu não consigo me ver (ou nunca consegui) . Essas horas são o espaço da transição. Diante disso posso me intitular como habitante da transitoriedade e com isso inauguro a impossibilidade de me conhecer senão como processo. Nietzsche chama corrompido, seja um animal, seja uma espécie, a um indivíduo que perde os seus instintos, que escolhe e prefere aquilo que lhe é prejudicial (...) Para ele a própria vida é o instinto de crescimento, da duração, da acumulação de forças,... Está coberto de razão, talvez se não tivéssemos Cristo como exemplo e o cristianismo como inspiração para viver, seríamos outra forma de gente, menos cabisbaixa, exaltadora da miséria como purificação. “Só os pobres irão para o céu”. Todo mundo brada isso por aí, pois neste caso não vejo a hora de ir para o inferno. (Amém, há, há, há, há, há,...). Beijos: alan, julho de 1996
OBS: os nomes com asterísco são fictícos e substituem os reais.